Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade

Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade

26/10/2023

 Mauro Antônio Rocha [*] 

Uma incompreensível exigência de prova do pagamento do ITBI inserida na Lei 9514/97 atrelou ao procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor a inconstitucional imposição de pagamento do imposto. 

 

 1. Como é sabido, a alienação fiduciária regulada pela Lei nº 9.514/1997 é o negócio jurídico que transfere ao fiduciário a propriedade resolúvel de coisa imóvel, com o escopo de garantiade outro negócio jurídico, simultâneo ou precedente, de qualquer ordem. A propriedade fiduciária que emana da inscrição do título no competente Registro de Imóveisii não se equipara, para quaisquer efeitos, à propriedade plenaiii, remanescendo na titularidade do fiduciante o direito real de aquisição do bemiv e, por sua natureza jurídica de direito real de garantia, está exceptuada da incidência do imposto de transmissão de bem imóvel – ITBI. 

A não incidência do mencionado tributo advém de expresso aparte estabelecido no inciso II do artigo 156 da Constituição Federalv, replicado no inciso II do artigo 35 do Código Tributário Nacionalvi, da condição resolutiva contida na transmissão fiduciária e, principalmente, da vontade política de não sobrepesar o custo operacional das transações no mercado de créditos. 

De modo igual e pelas mesmas razões, também não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia, que será efetuado com a mera apresentação ao oficial do Registro de Imóveis do termo de quitação fornecido pelo fiduciário. 

Ocorrem, no entanto, situações em que a resolução da propriedade fiduciária decorre do inadimplemento de obrigação contratual pelo fiduciante, circunstância prevista e regida no art. 26 da Lei nº 9.514/1997, através da dação em pagamento ou da consolidação da propriedade em nome do fiduciário com a consequente e compulsória venda do imóvel em leilão público 

1.1 Dação em pagamento 

A dação em pagamento regulada nos arts, 356 a 359 do Código Civil é o acordo ajustado entre os contratantes pelo qual o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida à título de pagamento, com determinação do preço e relações entre as partes pautadas pelas normas do contrato de compra e venda. A dação prevista no parágrafo 8º do art. 26 da lei de regência permite ao fiduciante darcom a anuência do fiduciário, seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívidaviidispensando a alienação obrigatória do bem em leilão

A dação em pagamento concilia a resolução da propriedade fiduciária, operando a revogação da cláusula resolutiva e o cancelamento da garantia findando a relação de confiança, com a transmissão definitiva da propriedade plena do bem imóvel ao fiduciário – sem abrigo na salvaguarda constitucional de não incidência, constituindo, dessa forma, o fato gerador do ITBI. 

1.2 Alienação do imóvel em público leilão 

O inadimplemento de obrigação contratual coloca o fiduciante em mora e, observados os procedimentos legais, dá causa à consolidação da propriedade, com o cancelamento da garantia fiduciária e confirmação da propriedade plena ao fiduciário, condicionada, entretanto, à compulsória oferta de venda em leilão público do imóvel cuja propriedade foi consolidada em virtude do decurso do prazo de purgação da mora. 

A alienação do bem em público leilão, com a obediência aos dispositivos legais e contratuais aplicáveis, busca converter o ativo nos recursos monetários 

necessários para a satisfação do crédito e a transmissão da propriedade dela resultante constituirá o fato gerador do imposto de transmissão intervivos

1.3 Leilões negativos e extinção da dívida 

O resultado negativo da oferta para venda do imóvel em leilão acarretará a extinção do crédito e o fiduciário tornar-se-á senhor do bem – pelo valor da dívida – com a transmissão plena e definitiva da propriedade, sem a necessidade, em nenhum tempo, de prestar contas ao fiduciante da destinação ou de eventual excesso que resultar da venda do imóvel. 

A transmissão plena e definitiva da propriedade ao fiduciário resultará da averbação requerida pelo interessado dos documentos, assinados pelo leiloeiro, que comprovem o insucesso dos leilões promovidos, postada no campo de incidência do tributo, torna exigível o recolhimento e comprovação de pagamento do ITBI. 

2. Inconstitucionalidade da exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade 

Da mesma forma, consideradas as razões jurídicas de não incidência tributária quando da constituição da garantia, não se apresenta lícita a exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade por conta de inadimplemento contratual, visto que a propriedade em nome do fiduciário será estabelecida ainda em caráter assecuratório, condicionadaviii, limitada e cerceada, despida do direito de livre disposição e com os direitos de uso e fruição tolhidos ou, no mínimo, circunscritos, além de vedada qualquer pretensão de apropriação do bem pelo agora proprietário. Ademais, como já visto, por força de dispositivos legais expressos e obrigatoriamente transcritos para o contrato de alienação fiduciária o bem imóvel será obrigatoriamente ofertado e vendido em público leilão, propiciando sua conversão em numerário para a satisfação da dívida e restituição do eventual excedente ao fiduciante. 

No caput e nos oito parágrafos do referido artigo 26 estão minudenciados de forma satisfatória os procedimentos prescritos para a consolidação da propriedade, da intimação do fiduciante para pagamento do valor da dívida ou das parcelas e encargos vencidos ao detalhamento da consequência do não atendimento ao chamado para a purgação da mora no prazo concedido. 

Contudo, inusitada e incompreensível exigência de vista da prova do pagamento do imposto de transmissão intervivos, acoimada ao parágrafo 7º do mencionado art. 26 da Lei nº 9.514/1997, como condição para a promoção da averbaçãoix da consolidação da propriedade pelos oficiais de registro de imóveis atrelou ao procedimento impertinente imposição de recolhimento do tributo, expressamente vedado na carta constitucional vigente. 

A utilização do adjetivo impertinente se justifica por conta de equivocados entendimentos a que a referida exigência dá causa por sugerir a incidência tributária, contrariando a disposição expressa contida no próprio art. 26 e seus parágrafos. Dessume-se da norma legal em comento que a consolidação ali referida resulta – exclusivamente – da mora, da intimação válida do fiduciante e decurso do prazo deferido para a purgação certificado pelo registrador que procederá, de ofício, sua averbação com a resultância de suprimir o direito real de aquisição e estabelecer propriedade condicionada em favor do fiduciário. 

A incômoda redação do referido § 7º do art. 26 parece ter atordoado os operadores do direito de tal forma que, apesar de decorridos quase trinta anos da promulgação da lei, poucas ações foram propostas com o objetivo de afastar a exigência de recolhimento do imposto, da comprovação do pagamento ao oficial de registro ou para apontar a inconstitucionalidade dessas exigências. 

Em artigo publicado no boletim Migalhasx o ilustre advogado André Abelha, examinou algumas decisões judiciais favoráveis à não incidência do imposto, arrolou os principais argumentos invocados pelos magistrados e buscou o xeque-mate ao asseverar que nenhum deles resistiria a uma análise crítica e concluir que “não há razão jurídica que fundamente, com solidez, a 

inexigibilidade do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor”. 

Ao primeiro argumento atribuído aos magistrados – o imposto teria sido recolhido por ocasião da instituição da garantia não havendo razão para fazê-lo novamente – o autor rebateu com precisão, esclarecendo a reiterada confusão entre a incidência e pagamento do ITBI na compra e venda do imóvel pelo fiduciante e não incidência na constituição da propriedade fiduciária em garantia do empréstimo ou financiamento contratado para a aquisição, e que, podendo ser o contrato principal de qualquer natureza, nem sempre haverá anterior transmissão de propriedade geradora da obrigação de pagamento do imposto. 

Outro argumento pautado foi também afastado de plano pelo autor – a lei ordinária não pode definir fato gerado do ITBI sem violação da reserva da lei complementar – por ser irretorquível que a Lei nº 9.514/1997 não define fato gerador do ITBI, limitando-se a estabelecer o dever de fiscalização para o registrador de imóveis. 

Com acerto, o autor busca desqualificar o derradeiro argumento – a propriedade já era do credor e, por isso, inexistindo transmissão não há fato gerador

Considera, inicialmente, a possibilidade de a propriedade ficar com o credor no caso de dois leilões negativos, o que é, de fato, uma permissão legal e, então, a não incidência do imposto respaldaria evidente contradição do sistema. Não obstante, já vimos anteriormente que, ao contrário do aventado, essa transferência onerosa e definitiva da propriedade plena ao credor em pagamento da dívida após o insucesso na oferta pública configura o fato gerador do imposto definido no inciso I do art. 156 da Constituição e se encontra fora do campo da não incidência, consequentemente é devido o pagamento do ITBI. 

Prosseguindo, sustenta ser o “escopo de garantia” a única e exclusiva razão para a não incidência do ITBI na contratação para concluir que, ‘a constituição da alienação fiduciária cria apenas um patrimônio separado, afetado 

a garantir o pagamento da dívida, e o credor passa a ser fiduciário, e não pleno proprietário. É a consolidação que põe fim a tal escopo, tornando efetiva a transferência da propriedade, não mais fiduciária. O que antes era um direito real de garantia, com a consolidação deixa de sê-lo. Daí a incidência do tributo’. 

Peço vênia para, com o devido respeito, discordar de algumas considerações trazidas pelo i. advogado, inclusive do juízo conclusivo sobre não haver razão jurídica que fundamente a inexigibilidade da incidência do ITBI na hipótese tratada e apresentar a matéria sob outra perspectiva. 

Apesar da premissa lógica, parece evidente que o escopo de garantia se finda com a liquidação da dívida assegurada e não com a consolidação da propriedade que, na estrutura criada para a garantia fiduciária, conforma um procedimento destinado a possibilitar a realização do ativo e a liquidação da dívida, estabelecendo – vale repetir – um domínio limitado e cerceado, mas ainda em caráter assecuratório, com os direitos inerentes à propriedade tolhidos e circunscritos, de modo que o aludido patrimônio separado, a garantir o pagamento da dívida ainda vigerá após a consolidação – mantendo intacto o desígnio de direito real de garantia para a garantia do crédito financeiro – não se embaralhando com o patrimônio imobiliário do credor proprietário. 

Resta límpido que a consolidação da propriedade exprime o exercício do direito real de garantia, portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade e que não desfaz a vocação assecuratória da propriedade fiduciária que permanecerá íntegra até a conversão do bem em recursos de maior liquidez, apropriados ao pagamento da dívida garantida. 

Finalmente, para amparar a incidência tributária, o autor aventa a possibilidade de estímulo a fraude, mediante simulação da alienação fiduciária para que, em conluio, possam os contratantes furtar-se ao recolhimento do imposto. Cumpre salientar que a possibilidade de fraude ou simulação não é razão que justifique a cobrança de impostos. Ademais trata-se, a nosso ver, de fraude impossível na alienação fiduciária. Como já visto, na resolução contratual pelo pagamento haverá o cancelamento da propriedade fiduciária, sem a 

incidência do imposto de transmissão. Na resolução contratual pela inadimplência, após a consolidação o bem será levado a leilão e vendido pela melhor oferta ou no caso de ausência ou insuficiência das ofertas, a propriedade plena do imóvel será transferida definitivamente ao credor e, em qualquer dessas hipóteses, com a incidência e correspondente recolhimento do ITBI. 

A violação da imunidade conferida pelo inciso II do art. 156 da Constituição Federal faz inconstitucional a exigência de pagamento do imposto na consolidação da propriedade e transforma em letra morta a exigência legal de comprovação do recolhimento como requisito para sua averbação pelo registro de imóveis. 

A passividade com que o “contribuinte” enfrenta a imposição ilegal dessas exigências se explica pela imediata agregação das despesas e encargos à dívida originária para compor o valor mínimo de venda do imóvel em leilão público, proporcionando o ressarcimento integral ao fiduciário do valor recolhido, assim como, na correspondente redução do quantum a ser restituído ao fiduciante quando apurado excedente na venda. 

Para tanto dispõe a lei que, frustrado o primeiro leilão seja realizado o segundo para a venda do imóvel por, no mínimo, valor igual ao da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiaisxiO mesmo critério é repetido no § 2º-B do art. 27 que acresce expressamente ao preço do imóvel para o exercício do direito de preferência pelo fiduciante os valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário…xii 

Convém registrar, neste ponto, que respeitados os procedimentos registrais da consolidação da propriedade da forma como estão estabelecidos, observada a inconstitucional exigência de comprovação de pagamento do imposto de transmissão expressa no parágrafo 7º do artigo 26, haverá ilegal e despropositada bitributação onerando indevidamente o fiduciante. 

3. Do acima exposto é possível extrair e oferecer ao debate as seguintes conclusões: 

(a) A não incidência inicial do imposto sobre a transmissão de bem imóvel na alienação fiduciária em garantia, deriva da imunidade expressa no art. 156, II da Constituição Federal e repetida no art. 35, II do Código Tributário Nacional; 

(b) Não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia que se fará com a apresentação do termo de quitação fornecido pelo fiduciário ao oficial do Registro de Imóveis; 

(c) Não haverá incidência do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade pelo inadimplemento contratual, nos termos do art. 26 da lei de regência, visto que a transmissão do domínio é condicionada e limitada, ainda em caráter de garantia, estando vedada a apropriação do bem pelo credor que estará obrigado a alienar o imóvel em leilão público e a entregar ao fiduciante o valor que sobejar ao crédito, configurando mero instrumento de facilitação da prestação assecuratória; 

(d) A consolidação da propriedade em nome do credor exprime o exercício do direito real de garantia estando portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade 

(e) É inconstitucional a exigência de apresentação de comprovante de pagamento do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade realizada como meio para a alienação do imóvel e satisfação da dívida garantida e viola a imunidade conferida pelo incido II do art. 156 da Constituição Federal; 

(e) Configurará hipótese de incidência do imposto e fato gerador da obrigação tributária a ocorrência de qualquer uma das situações explicitamente previstas na Lei nº 9.514/1997, das quais decorram a transmissão efetiva da propriedade, (i) na dação em pagamento; (ii) na transmissão da propriedade ao arrematante 

do imóvel em leilão; (iii) na efetiva transmissão da propriedade ao fiduciário desobrigada da alienação forçada, quando ratificado o insucesso da venda em leilão. 

[*] Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral, com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Tributário, do Consumidor, entre outros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP na gestão 2017/2018. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Vice-Presidente da Academia de Direito Notarial e Registral – AD NOTARE. Palestrante e instrutor e professor. Coordenador de Contencioso Jurídico da Caixa Econômica Federal – CEF. Autor do livro “Alienação Fiduciária de Bem Imóvel – da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros”. 

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

26/10/2023

Mauro Antônio Rocha
Decisões do TJ/SP que aplicam equivocada tese de enriquecimento sem causa, transferem ao fiduciário ônus e consequências do descumprimento contratual pelo devedor e condenam o credor à ‘aquisição’ do imóvel constituído em garantia.

 

A abstrata possibilidade de enriquecimento imotivado do fiduciário intimida o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia desde a promulgação da lei 9.514/97 mormente quando – depois do inadimplemento contratual absoluto pelo fiduciante e frustrada a venda do imóvel nos públicos leilões – ocorre a transmissão definitiva da propriedade para o credor.

Esse constrangimento, que no passado era enfrentado especificamente por devedores e fiduciantes, recentemente passou a ser experimentado também pelos credores fiduciários na esteira de uma sequência de decisões emanadas da 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo1 determinando ao credor, nesses casos, que efetue em favor do fiduciante o pagamento de “quantia relativa à diferença entre o valor da avaliação e o valor atualizado da dívida (com todos os encargos contratuais) somado ao das despesas devidamente comprovadas, apurado no momento da adjudicação do imóvel (data do segundo leilão negativo), corrigido monetariamente a partir de então e acrescido de juros de mora desde a citação”, além do ônus sucumbencial.

Visivelmente desacertadas aquelas decisões condenam o fiduciário à ‘adquirir’ o imóvel por valor superior ao da oferta pública e universal de venda no segundo leilão ao, por absurdo, impor o pagamento do valor ‘relativo à diferença entre o valor de avaliação e o valor atualizado da dívida’, independentemente do valor do bem alcançável no mercado e transferem do devedor para o credor, de forma enviesada, os ônus e responsabilidades do descumprimento contratual pelo devedor.

Peço vênia para articular algumas considerações sobre o assunto.

  1. De início, cabe reconhecer que, com a extensão de uso da alienação fiduciária de bem imóvel para a garantia de transações comerciais e financeiras diversas do típico e originário financiamento imobiliário, desfez-se a singela e convencional correlação de forças imaginada pelo legislador, notadamente no ajustamento do instituto às operações comerciais, de prestação de serviços, e de empréstimos bancários sem destinação específica, pela desproporção entre o valor de avaliação do bem oferecido em garantia e o montante dos recursos fornecidos pelo credor.

Essa disparidade entre o valor da garantia e o valor garantido, em geral muito menor, apontada desde os primórdios da lei e considerada a principal fragilidade da alienação fiduciária, cria um gap patrimonial apto a desiquilibrar as relações contratuais e  granjeou maior relevância nos últimos anos pelos reflexos potencialmente danosos ao fiduciante quando adotada a solução derradeira2 determinada pela lei 9.514/97 com a transmissão definitiva do imóvel para o patrimônio do credor fiduciário.

Urge, portanto, realinhar a norma legal, mediante atividade legislativa, para obstar que o credor opere indevidamente os procedimentos da execução extrajudicial, com o fito de angariar benefícios que caracterizem, ao final, o aviltante “enriquecimento sem causa”.

Isso não significa, no entanto, assentir cabalmente com a equivocada tese de enriquecimento do credor fiduciário tão-só pela assunção da propriedade plena do imóvel após as infrutíferas tentativas de venda por meio dos leilões públicos.

  1. O enriquecimento sem causa, em sua melhor definição, decorre do acréscimo de bens que, em detrimento de outrem, se verificou no patrimônio de alguém, sem que para isso tenha havido fundamento jurídico. Requer a ausência de justa causa, o locupletamento ilegal e o nexo causal entre o enriquecimento  e o empobrecimento, é dizer, o acréscimo patrimonial de uma parte deve coincidir com o decréscimo patrimonial da outra, sem justificativa jurídica plausível.

No entanto, a venda do imóvel objeto da garantia para terceiros em leilão, assim como a transmissão plena e definitiva da propriedade ao credor fiduciário após o público, efetivo e frustrado leilão, estão notoriamente fundadas no parágrafo 5º do art. 27 da supradita lei 9.514/97, não se amoldando, nesse aspecto, à definição indicada.

Também não se encontrará nas modalidades tratadas acréscimo ou decréscimo patrimonial das partes que se possa correlacionar de forma imediata ou mediata.

Na arrematação do bem em leilão, o licitante pagará em moeda contada – exclusivamente – o montante correspondente ao da oferta pública de venda, que será utilizado para a liquidação da dívida, reembolsando-se ao fiduciante o que sobejar.

Na transmissão da propriedade plena, definitiva e incondicionada do bem ao fiduciário, haverá a conversão de ativo financeiro (créditos de titularidade do credor não adimplidos espontaneamente pelo devedor) em ativo imobiliário (transferência plena e definitiva da propriedade do imóvel ao credor, mediante quitação total ou parcial da dívida, conforme o caso), enquanto ao devedor restará elidido o passivo financeiro (dívida e encargos).

Tanto a conversão quanto a elisão se darão por grandeza correspondente ao valor de mercado do bem, representado pela quantia exigida para a venda pública, regularmente proposta.

Avaliação e mercado são valores comumente não convergentes. O valor de avaliação é apurado através de perícia ou outro meio técnico-profissional aceitável e servirá de indicador para o lance mínimo de venda. O valor de mercado, por sua vez, espelhará o lance máximo considerado atrativo pelos licitantes e interessados na aquisição do bem.

Assim, nos exatos contornos do procedimento definido pela lei 9.514/97, demonstrada a ausência de interesses que descarte o valor de avaliação, parece lógico que o bem seja oferecido pelo seu valor de mercado, neste caso representado, por força de determinação legal, pelo valor total da dívida. Quando, ainda assim, não se apresentarem lances vencedores, manda a lei que a propriedade seja transferida definitivamente ao credor pelo valor da dívida, porque coincidente com o valor de mercado utilizado para a decisiva oferta pública de venda, de maneira que, à princípio, não se poderá comprovar enriquecimento ilícito ou imotivado.

Para afastar possível desvio ou ilegalidade a lei processual vigente3 veda a aceitação de preço vil pela oferta, assim considerado o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz ou a cinquenta por cento do valor de avaliação, que, dessa forma, passarão a configurar o valor de mercado do imóvel para todos os fins.

  1. Ainda assim, é inegável que em certas transações entre pessoas naturais ou jurídicas não financeiras a solução proposta no § 5º do art. 27 da lei 9.514/97 revele a perspectiva de demasiado benefício ao credor, porém, não se configurará facilmente a ilicitude do locupletamento, face à já aludida autorização legal.

No caso específico das instituições financeiras, entretanto, a expectativa da colheita de lucros não operacionais pela especulação imobiliária e, portanto, da própria caracterização de qualquer benefício ilícito ou de enriquecimento não justificado, pode ser considerada inexistente, uma vez que esses imóveis recebidos como “bens não de uso” deverão ser compulsoriamente vendidos nos prazos estipulados pelo Banco Central do Brasil4, sob pena de aplicação das cominações legais cabíveis, que incluem restrições ao limite de operações de empréstimos com liquidez. Para além disso, a recepção e retenção desses bens requer vultoso dispêndio de recursos para o pagamento das despesas de administração, manutenção, segurança, tributárias, condominiais etc. a reclamar a imediata realização de campanha de venda direta pela melhor oferta.

Concluindo o raciocínio, se o bem é oferecido à venda, com a estrita observância da lei, por valor correspondente à metade do valor de avaliação, este é o valor de mercado a que estará sujeito qualquer interessado, inclusive o credor no exercício de seu direito de aquisição da propriedade. Ora, se qualquer terceiro poderia adquirir o bem pelo valor da oferta, não se justifica a imposição do julgado que o obrigue a pagamento maior pela adoção do valor da avaliação.

E, no caso julgado, ainda que se considere que a transmissão da propriedade se deu por preço vil – inferior a cinquenta por cento do valor de avaliação do imóvel – uma justa condenação estaria limitada ao pagamento complementar igual à diferença entre o valor de mercado, definido na forma acima referida. e o valor atualizado da dívida.

  1. Contudo, as decisões do TJ/SP acima referidas, para além do equívoco apontado, inauguraram um novo argumento, no mínimo, insólito ao pretexto de que a hipótese dos autos não se amoldaria aos dispositivos legais citados porque, no caso, não houve lance a ser considerado pela ausência de licitantes interessados.

Obviamente, em certame de lanços com estipulação prévia de oferta mínima é inesperado que alguém faça, de boa-fé, proposta de valor inferior ao lance inicial e, da mesma forma, é impensável que dessa oferta o leiloeiro faça o registro.

Se o edital foi regularmente publicado – e não há nenhuma informação em contrário – e o leilão efetiva e comprovadamente realizado – o que está confirmado nos relatórios – a ausência de lance, coincide ao não ofertamento de proposta de valor igual ou superior ao montante da dívida, não havendo na lei de regência, nem mesmo no código processual, dispositivo que condicione a existência de lance para a validade da praça.

Com relação a esse argumento, cumpre perquirir: (a) se a existência de registro de oferta descartada pelo leiloeiro, por valor inferior ao lance mínimo alteraria, de alguma forma, a decisão prolatada?; (b) se a inexistência de lance que descaracteriza o certame, como decidido naqueles julgados, não invalidaria, por consequência, o leilão, tornando-o nulo de pleno direito?; e (c) se o leilão pode ser nulo de pleno direito a transmissão da propriedade ao fiduciário, não seria, igualmente, nula de forma, a exigir a retomada do procedimento desde aquele ponto, o que faria nulo também o julgado condenatório?

  1. Finalmente, a alienação fiduciária de bem imóvel é o maior, o melhor e o mais importante instrumento de garantia vigente, permite a concessão facilitada e abundante de crédito com taxas de juros reduzidas e deve ser preservado para o atendimento dos milhões de brasileiros que sonham com a conquista da moradia própria e para o bem do crédito imobiliário, da construção civil e da própria estabilidade econômica do país.

A preservação desse instrumento de garantia carece da confiança do mercado financeiro de que a segurança jurídica que a lei 9.514/97 não será abalada por decisões judiciais equivocadas como as que foram aqui expostas. É preciso que, sem abandonar as lutas pelo justo atendimento dos anseios do fiduciante, se faça também a defesa do regular direito do fiduciário.


1 Ap. Cível 100368597.2020.8.26.0292; Rel. José Augusto Genofre Martins; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg.28/06/2022; Ap. Cível 1002455-19.2017.8.26.0100; Rel. Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 25/02/2022; Ap. Cível 1007621-29.2018.8.26.0704; Rel. Mário Daccache;  29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 16/02/2022.

2 Lei nº 9.514, de 20/09/1997, art. 27, § 5º.

3 Código de Processo Civil, art. 891 e § único.

4 Lei 13.506/2017, art. 3º, § 2º, II e Circular BCB 909, de 11/01/1985.

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

26/10/2023

Mauro Antônio Rocha

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.

 

Na “ausência” de termo legal expresso para a consolidação da propriedade após decorrido o prazo para purgação da mora – e com base em incurial norma de serviço emanada da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – os direitos dos fiduciantes são violados e suas dívidas injustamente oneradas.

  1. De acordo com os procedimentos da lei 9.514/97 verificado o inadimplemento total ou parcial da dívida pelo devedor e observado o decurso do prazo contratual de carência cabe ao credor iniciar a execução extrajudicial requerendo ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do fiduciante para efetuar o pagamento no prazo legal.

Transcorrido o lapso de quinze dias contados da efetiva intimação, sem que o fiduciante pague o débito apontado, o oficial de registro certificará o fato e dará ciência ao credor, para que este proceda à comprovação de recolhimento do ITBI e do laudêmio incidentes sobre a transmissão do domínio exigida para a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.

A lei não determina expressamente o prazo para que o credor efetive os pagamentos e comprove os recolhimentos fiscais essenciais para a averbação. Essa “ausência” de termo legal expresso permitiu, por largo tempo, a procrastinação indeterminada e conveniente do pagamento dos tributos, da averbação da consolidação e da consequente alienação do imóvel em leilão pelo fiduciário, violando direitos e onerando a dívida do fiduciante.

  1. No ano de 20131, entretanto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo incluiu no capítulo XX de suas normas de serviço, destinadas aos cartórios extrajudiciais, dispositivo – posteriormente replicado nas normas administrativas do extrajudicial de diversos outros estados da federação – redizendo que a consolidação da propriedade se faz à vista do comprovante de recolhimento dos tributos exigidos, que a base de cálculo do imposto sobre a transmissão da propriedade é o valor econômico declarado pelas partes ou o valor tributário do imóvel, independentemente do valor remanescente da dívida, complementado por subitem que vige atualmente com a seguinte redação, após ser alterado pelo Provimento CG 56/19:

250.2. Decorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias sem as providências elencadas no item anterior, os autos serão arquivados, com cancelamento do protocolo. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.

A rigor, a norma administrativa apenas indicou ao oficial de registro que, no caso de abandono do feito pelo interessado, procedesse ao arquivamento dos autos “decorrido o prazo de 120 dias sem as providências elencadas”, além de prescrever punição obviamente deturpada ao exigir “novo procedimento de execução extrajudicial” para o prosseguimento da excussão como consequência da negligência, entretanto, restou convencionado entre oficiais de registro de imóveis e credores fiduciários que “o credor tem um prazo de 120 dias”, conforme a norma administrativa e que “o prazo de vigência da prenotação de pedido de intimação ficará prorrogado até a finalização do procedimento com a apresentação do pagamento do imposto de transmissão, ITBI ou laudêmio”2.

Ainda que se pretenda sustentar a aludida “ausência” de prazo legal para a averbação da consolidação da propriedade – tema que será enfrentado em seguida – para justificar a adoção do prazo sugerido na norma  de serviço é preciso ressaltar que a e. Corregedoria da Justiça, mesmo autorizada a regulamentar as atividades dos  cartórios extrajudiciais3, não detém competência para legislar, especialmente sobre Direito Registral, matéria privativa da União, nos termos do art. 22, inciso XXV, da Constituição Federal, alterar prazos ou estabelecer obrigações para o jurisdicionado e, para além disso, que o prazo destacado não traz coincidência razoável com os demais prazos prescritos na lei, que expressam a celeridade e a agilidade pretendida no procedimento extrajudicial adotado.

  1. Ocorre, porém, que a afirmada presunção de “ausência” de prazo legal para a averbação de interesse do credor não resiste ao exame superficial do procedimento de execução extrajudicial trazido pelo art. 26 da lei 9.514/97 sob o crivo do direito registral vigente.

Nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, a execução extrajudicial tem início com a constituição do fiduciante em mora e a prenotação de requerimento do fiduciário para que o oficial de registro proceda à intimação do fiduciante para a purgação da mora. Sobre a prenotação, ou inscrição no Livro do Protocolo, discorre o Desembargador Ricardo Dip, ao comentar o artigo acima transcrito:4

“Se o atual registro imobiliário brasileiro, centrado ‘quodammodo’, no método da matrícula ou fólio real (art. 195, LRP), demanda, para a complementação do sistema publicitário, o recurso a uma fonte pessoal (art. 180, LRP), não menos a metódica registral, já não à vista direta da publicidade, mas dirigida à garantia de direitos, exige uma ordem no tempo aquisitivo desses direitos. Não, entre nós, uma ordem exógena: ainda que o pudera ser, mediante alguma espécie de prioridade indireta, extrarregistrária, p. ex., notarial. No entanto, isto sim, uma ordem endógena, interna ao método registrário: a prenotação, i.e., a inscrição no Livro do Protocolo (art. 173, inc. I, 174 e 184 e ss., LRP).” (os grifos são do autor)

Isto posto, o registro imobiliário brasileiro obedece a “uma ordem no tempo aquisitivo” consubstanciada na prenotação, que estabelece o direito posicional de preferência, assim lecionado por Dip:

“O transitório direito posicional de preferência registrária, resultante da prenotação – potior in iure qui priusin tempore ou, mais exatamente, prius in tempore, fortior in tabula – permanece: (a) pelo prazo ordinário de 30 dias; (b) durante o processamento da dúvida (cf. art. 203. LRP); (c) até que se perfaça o registro ou a averbação objeto, a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação.” (os grifos são do autor)

A lei 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos – que estabelecia, na redação vigente até o dia 27 de junho de 2022, a cessação dos efeitos da prenotação após decorridos 30 (trinta) dias de seu lançamento no protocolo – estabelece na redação vigente após o dia 28 de junho de 2022 que:

Art. 205 – Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 20 (vinte) dias da data do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais. 

O procedimento administrativo da execução extrajudicial da alienação fiduciária está regulamentado nos itens 236 e seguintes do capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e, para o que interessa ao presente estudo, suficiente trazer os seguintes itens:

  1. Prenotado e encontrando-se em ordem, o requerimento deverá ser autuado com as peças que o acompanham, formando um processo para cada execução extrajudicial.

[…]

240.1. O prazo de vigência da prenotação ficará prorrogado até a finalização do procedimento. 

240.2 Formulada nota devolutiva pelo registrador no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora, o não atendimento das exigências por omissão do requerente no prazo de 30 dias5 acarretará o arquivamento do procedimento de intimação, com o cancelamento da prenotação.

Temos, assim, que, rigorosamente observada a norma administrativa, a prenotação do requerimento de intimação dará início ao “processo para cada execução extrajudicial” – e, portanto, ao prazo ordinário de 20 dias predito na norma legal, que permanecerá sobrestado “no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora” e da necessidade de comprovação do recolhimento dos tributos devidos – com igual prazo para cumprimento de exigência formulada em nota devolutiva, nesse período – ou até que se perfaça seu objeto, o que coincidirá com a purgação da mora ou com a efetiva consolidação da propriedade – “a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação”.

Dessa forma, ainda que se considere as naturais dificuldades encaradas pelos oficiais registradores e seus prepostos para a intimação pessoal do fiduciante, ultrapassando os desencontros, incertezas cadastrais e ocultações deliberadas – que, muitas das vezes, exigirão a publicação de editais – justificadoras do protraimento do prazo sem o correspondente lastro legislativo, bem como uma autoconcedida “autorização legislativa” de prorrogação normativa do prazo de validade da prenotação inserida pela Corregedoria Geral da Justiça no item 456 e, mais especificamente, no item 240.1 supra transcrito, no capítulo XX das normas de serviço parece-nos evidente que o decurso do prazo quinzenário conferido à purga da mora rematará a protelação conferida, fazendo com que se retome a contagem do prazo legal para a “finalização do procedimento”.

Na doutrina pesquisada, somente BRANDELLI resvalou na questão proposta, da seguinte maneira:

“Apesar de a prenotação do requerimento de intimação ter validade legal de 30 dias (art. 205 da Lei n. 6015/73), neste caso, sua validade será sobrestada pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações, o que poderá importar em inúmeras diligências, bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações.”7 

Reconhece BRANDELLI a necessidade do sobrestamento da prenotação “pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações (grifo nosso) […] bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações”. Pode-se inferir da leitura que, mesmo na doutrina favorável, o eventual sobrestamento não se estende para além da ultimação do prazo para a purga da mora.

  1. Prosseguindo, para a determinação da vigência do prazo de averbação da consolidação da propriedade é imprescindível que seja definido o momento da “finalização do procedimento”.

A nosso juízo, e com vistas às normas legais e à melhor doutrina, havendo o lançamento do requerimento de intimação no Livro de Protocolo, isto é, feita a prenotação, “a finalização do procedimento” ocorrerá com: 

a)  a purgação da mora;

b)  a averbação da consolidação da propriedade ao credor; ou

c)  o não cumprimento de exigência de qualquer natureza pelo credor, regularmente apontada pelo oficial de registro, inclusive comprovação do recolhimento dos impostos devidos. 

A primeira alternativa não requer maior destaque, sendo finalizado o procedimento com o pagamento da dívida dentro do prazo legal deferido para a purgação da mora. Na segunda, “a finalização do procedimento” provirá do averbamento da consolidação da propriedade em nome do credor, após descumprido o prazo de purgação pelo fiduciante regularmente intimado e comprovado o pagamento dos tributos incidentes – respeitado o prazo legal demarcado para a prenotação.

Menos óbvia, a alternativa final reclama maior aprofundamento: “a finalização do procedimento” se dará com a cessação dos efeitos da prenotação pela omissão do interessado em cumprir exigência legal, assim dizendo, no vigésimo dia contado do lançamento do requerimento da intimação no Livro do Protocolo, sobrestado pela expedição da intimação e retomado a partir de ciente o fiduciário do decurso do prazo para pagamento pelo fiduciante, declinada a data inicial e incluída a do término do prazo.

No caso específico de omissão na comprovação de cumprimento da obrigação tributária bastará que se determine o termo inicial da prenotação [dia 1], o dia da expedição da intimação [dia 2] e a data em que o oficial do registro deu ciência ao credor fiduciário do decurso do prazo [dia 3].

A título de exemplo para requerimento protocolado já na vigência da lei que reduziu o prazo da prenotação para 20 dias:

[Dia 1] prenotação em 04/07/2022 (o dia inicial é descartado);

[Dia 2] intimação expedida em 07/07/2022 (já decorridos 3 dias);

[Dia 3] certificação do final do prazo 28/02/2023 (decorrido mais 1 dia). 

A partir de então o credor terá 16 dias (dos 20 dias de prazo de que trata o art. 205 da LRP), com termo final em 16/3/23, para cumprir a exigência, ou seja, comprovar o pagamento dos impostos devidos sob pena de perempção da prenotação e a obrigação de reiniciar o procedimento de execução extrajudicial, conforme demanda a norma administrativa. Cabe realçar que alguns autores entendem que o prazo de cumprimento de exigência no período da prenotação será sempre de vinte dias, o que altera o termo final para 20/3/23, mas em nada altera o raciocínio exposto.  

Na hipótese de garantia fiduciária vinculada a operação de financiamento habitacional deverá ser observada a carência de 30 dias8, após a expiração do prazo de purgação da mora, para a consolidação da propriedade e, nessa hipótese, o [dia 3] corresponderia ao termo final da carência, retomando o prazo limite para a comprovação do recolhimento dos tributos e consolidação da propriedade.

Resta claro do exemplo em comento que o sobrestamento é findo com a certidão e ciência do credor do transcurso do prazo sem purgação da mora pelo fiduciante, retomando a prenotação seu trâmite normal e que a “finalização do procedimento” resultará da comprovação de pagamento dos tributos exigidos e da averbação da consolidação na respectiva matrícula ou, decorrido o prazo legal, do cessamento automático dos efeitos da prenotação.

Cumpre, a respeito do assunto até aqui tratado, ressaltar nosso entendimento de inconstitucionalidade da cobrança do imposto de transmissão (ITBI) na consolidação da propriedade.9

  1. Não bastasse isso, a norma concebida na corregedoria paulista pretende impor ao fiduciário negligente penalidade cabalmente desconectada da estrutura jurídica do instituto ao vedar o prosseguimento da excussão, após decurso do prazo ali fixado e o cancelamento do protocolo por abandono, exigindo a abertura de novo procedimento de execução extrajudicial, como se o deletério descaso do credor tivesse o condão de repristinar o contrato fulminado.

A norma não explicita o que deve ser entendido por “novo procedimento de execução extrajudicial”, contudo, a melhor interpretação será encontrada no item 238 do capítulo XX das mesmas normas de serviço que assim dispõe: “o processo” (sic) de execução extrajudicial será formado com a autuação do requerimento de intimação e das peças que o acompanham”.

Destarte, a aplicação da penalidade tratada no item 250.2, capítulo XX,  das normas de serviço da Corregedoria Geral resultaria na invalidação integral da execução extrajudicial e no restabelecimento do status quo ante, consequentemente no seu refazimento desde o requerimento de intimação do fiduciante e, portanto, no convalescimento  – imediato e irreversível – do contrato de alienação fiduciária e na ressurreição do contrato principal, com o consequente retraimento das obrigações contratuais do fiduciante ao início do período de negligência do fiduciário, inclusive quanto ao vencimento das parcelas e encargos punitivos pelo não pagamento nos prazos originários, atribuindo e acumulando prejuízos ao fiduciante.  

De direito, conforme procedimentos arrolados na lei 9.514/97, a ‘certidão de transcurso de prazo sem purgação da mora’ pelo fiduciante constitui o título administrativo inscritível da consolidação da propriedade, ou seja, da transmutação da propriedade fiduciária em plena (ainda que condicionada), que produz efeitos jurídicos imediatos entre as partes e se perfaz com sua averbação de ofício, independentemente de requerimento ou petição do fiduciário, na matrícula imobiliária correspondente, para a pública exteriorização e ciência daqueles efeitos por terceiros.

Ora, se a consolidação da propriedade em nome do credor decorre – apenas – do transcurso do prazo sem a purgação da mora e essa passagem temporal regularmente certificada pelo oficial competente enseja, reflexamente, a extinção do direito real de aquisição antagônico e a resolução definitiva do contrato principal, ainda que a averbação possa ser obstada ou sobrestada até a efetiva apresentação da prova do pagamento dos tributos incidentes – por se tratar de exigência legal – evidentemente o descumprimento da obrigação fiscal não terá a aptidão de desconstituir as consequências jurídicas dela decorrentes e acima descritas.

Por último, a comprovação do recolhimento dos tributos incidentes não é uma mera exigência de natureza registral para a “finalização do procedimento”, sendo certo que a certificação do decurso de prazo – por si – reconhece e constitui o fato gerador que dá origem à obrigação tributária cujo cumprimento é exigido pela legislação específica, de forma que a ausência de pagamento até a data aprazada (dez ou quinze dias, conforme a interpretação adotada), acarretará a imposição de multas, encargos moratórios e atualização monetária, não sendo da competência da Corregedoria da Justiça, também aqui, dispensar ou postergar o recolhimento desses tributos.

  1. Os resultados nocivos dessa indevida prorrogação concedida ao credor fiduciário pela norma administrativa vão muito além da evidente violação do direito do fiduciante à imediata realização do leilão público para a venda do bem, liquidação da dívida e mediato reembolso do valor sobejante nos termos do art. 27 ‘caput’ e § 4º da lei 9.514/97, produzindo uma sequência de danos e prejuízos materiais e morais ao fiduciante cuja relação de causalidade com o elastecimento do prazo de consolidação da propriedade pode ser facilmente estabelecida.

Sucede que o saldo devedor da dívida será, para fins de determinação do valor de venda, atualizado na data do leilão, incorporando ao débito o valor das parcelas decursadas no período de 120 dias da dilação concedida, com os juros convencionais, penalidades e demais encargos contratuais (§ 3º do art. 27 da lei), vale dizer, independentemente da manutenção da posse do imóvel, o fiduciante responderá, pelas prestações vencidas no decorrer da procrastinação do credor fiduciário e, por absurdo, também pelas multas moratórias e contratuais do não desejado pagamento. Para além disso, serão acumuladas ao total da dívida todas as despesas, prêmios de seguro, encargos legais, tributos e contribuições condominiais também pagas ou incorridas desde a data da certificação do decurso da mora até a data do leilão.

Nada obstante, embora a consolidação – de fato – da propriedade em nome do credor resulte da simples certificação do decurso da mora, com o efeito de resolver – de direito – o contrato principal e extinguir a dívida, o devedor ou fiduciante permanecerá injustamente negativado nos cadastros das entidades de proteção ao crédito por todo esse período, com todo o inconveniente e severos prejuízos de ordem moral resultantes, impossibilitado, por exemplo, a contratação da locação de outro imóvel para sua moradia. 

  1. Por todo o exposto, parece-nos claro e razoável concluir que:

(a)  de acordo com as leis de regência e dos registros públicos vigentes o prazo para a comprovação de recolhimento dos tributos incidentes na consolidação da propriedade deve ser de 20 (vinte dias) contados da prenotação do requerimento de intimação, que será sobrestado a partir da data de expedição da intimação até a data de ciência, por certidão, do decurso de prazo para purgação da mora pelo devedor e fiduciante, sendo então retomado para o cumprimento da exigência legal (comprovação de pagamento dos tributos) até o termo final;

(b) o lapso de 120 (cento e vinte) dias de que trata o item 205 das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não elastece os prazos peremptórios e próprios do fiduciário, devendo ser observado pelos oficiais de registro de imóveis, quando for o caso, para encerramento do protocolo e arquivamento dos autos abandonados;

(c) nada obsta, a nosso juízo, que o oficial de registro proceda ao arquivamento dos autos, por abandono logo após o decurso do prazo de validade da prenotação;

(d) a consolidação da propriedade, assim como a venda do bem em leilão público, são obrigações legais do fiduciário, podendo o devedor e fiduciante exigir sua efetivação, inclusive com antecipação de tutela e fixação de multa para o descumprimento, além da imposição de perdas e danos10;

(e) o fiduciante deve exigir que sejam excluídos do montante da dívida as multas e encargos decorrentes do não pagamento dos tributos no prazo legal, assim como das parcelas de dívidas vencidas no período de negligência do fiduciário, dos encargos tributários e condominiais, não sendo lícita, a nosso juízo, a exigência de taxa de ocupação relativa ao mesmo período.

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.  


1 Provimento CGJSP nº 37/2013

2 Conforme exposto no XLIV Encontro do Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Curitiba, 2017. https://irib.org.br/files/palestra/xliv-tema-03-maria-carmo1.pdf/

3 Art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942

4 Alvim Neto. José Manuel de Arruda [et al]. Lei dos Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1084.

5 Refere-se o autor ao art. 205 da Lei nº 6015/1973 – LRP

6 Silva, Ulisses da. Direito Imobiliário: O registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2013, p. 151

7 “45. Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação, salvo prorrogação por previsão
legal ou normativa, se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no livro protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender as exigências legais.” (Prov. CGJSP 58/89, cap. XX)

8 Brandelli. Leonardo. Operações Imobiliárias Estruturação e tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95

9 https://www.migalhas.com.br/depeso/381596/a-inconstitucionalidade-do-itbi-na-consolidacao-

10 Arts. 536, § 4º e 815 do Código de Processo Civil.

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia

26/10/2023

Mauro Antônio Rocha

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.

 

Na “ausência” de termo legal expresso para a consolidação da propriedade após decorrido o prazo para purgação da mora – e com base em incurial norma de serviço emanada da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – os direitos dos fiduciantes são violados e suas dívidas injustamente oneradas.

  1. De acordo com os procedimentos da lei 9.514/97 verificado o inadimplemento total ou parcial da dívida pelo devedor e observado o decurso do prazo contratual de carência cabe ao credor iniciar a execução extrajudicial requerendo ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do fiduciante para efetuar o pagamento no prazo legal.

Transcorrido o lapso de quinze dias contados da efetiva intimação, sem que o fiduciante pague o débito apontado, o oficial de registro certificará o fato e dará ciência ao credor, para que este proceda à comprovação de recolhimento do ITBI e do laudêmio incidentes sobre a transmissão do domínio exigida para a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.

A lei não determina expressamente o prazo para que o credor efetive os pagamentos e comprove os recolhimentos fiscais essenciais para a averbação. Essa “ausência” de termo legal expresso permitiu, por largo tempo, a procrastinação indeterminada e conveniente do pagamento dos tributos, da averbação da consolidação e da consequente alienação do imóvel em leilão pelo fiduciário, violando direitos e onerando a dívida do fiduciante.

  1. No ano de 20131, entretanto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo incluiu no capítulo XX de suas normas de serviço, destinadas aos cartórios extrajudiciais, dispositivo – posteriormente replicado nas normas administrativas do extrajudicial de diversos outros estados da federação – redizendo que a consolidação da propriedade se faz à vista do comprovante de recolhimento dos tributos exigidos, que a base de cálculo do imposto sobre a transmissão da propriedade é o valor econômico declarado pelas partes ou o valor tributário do imóvel, independentemente do valor remanescente da dívida, complementado por subitem que vige atualmente com a seguinte redação, após ser alterado pelo Provimento CG 56/19:

250.2. Decorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias sem as providências elencadas no item anterior, os autos serão arquivados, com cancelamento do protocolo. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.

A rigor, a norma administrativa apenas indicou ao oficial de registro que, no caso de abandono do feito pelo interessado, procedesse ao arquivamento dos autos “decorrido o prazo de 120 dias sem as providências elencadas”, além de prescrever punição obviamente deturpada ao exigir “novo procedimento de execução extrajudicial” para o prosseguimento da excussão como consequência da negligência, entretanto, restou convencionado entre oficiais de registro de imóveis e credores fiduciários que “o credor tem um prazo de 120 dias”, conforme a norma administrativa e que “o prazo de vigência da prenotação de pedido de intimação ficará prorrogado até a finalização do procedimento com a apresentação do pagamento do imposto de transmissão, ITBI ou laudêmio”2.

Ainda que se pretenda sustentar a aludida “ausência” de prazo legal para a averbação da consolidação da propriedade – tema que será enfrentado em seguida – para justificar a adoção do prazo sugerido na norma  de serviço é preciso ressaltar que a e. Corregedoria da Justiça, mesmo autorizada a regulamentar as atividades dos  cartórios extrajudiciais3, não detém competência para legislar, especialmente sobre Direito Registral, matéria privativa da União, nos termos do art. 22, inciso XXV, da Constituição Federal, alterar prazos ou estabelecer obrigações para o jurisdicionado e, para além disso, que o prazo destacado não traz coincidência razoável com os demais prazos prescritos na lei, que expressam a celeridade e a agilidade pretendida no procedimento extrajudicial adotado.

  1. Ocorre, porém, que a afirmada presunção de “ausência” de prazo legal para a averbação de interesse do credor não resiste ao exame superficial do procedimento de execução extrajudicial trazido pelo art. 26 da lei 9.514/97 sob o crivo do direito registral vigente.

Nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, a execução extrajudicial tem início com a constituição do fiduciante em mora e a prenotação de requerimento do fiduciário para que o oficial de registro proceda à intimação do fiduciante para a purgação da mora. Sobre a prenotação, ou inscrição no Livro do Protocolo, discorre o Desembargador Ricardo Dip, ao comentar o artigo acima transcrito:4

“Se o atual registro imobiliário brasileiro, centrado ‘quodammodo’, no método da matrícula ou fólio real (art. 195, LRP), demanda, para a complementação do sistema publicitário, o recurso a uma fonte pessoal (art. 180, LRP), não menos a metódica registral, já não à vista direta da publicidade, mas dirigida à garantia de direitos, exige uma ordem no tempo aquisitivo desses direitos. Não, entre nós, uma ordem exógena: ainda que o pudera ser, mediante alguma espécie de prioridade indireta, extrarregistrária, p. ex., notarial. No entanto, isto sim, uma ordem endógena, interna ao método registrário: a prenotação, i.e., a inscrição no Livro do Protocolo (art. 173, inc. I, 174 e 184 e ss., LRP).” (os grifos são do autor)

Isto posto, o registro imobiliário brasileiro obedece a “uma ordem no tempo aquisitivo” consubstanciada na prenotação, que estabelece o direito posicional de preferência, assim lecionado por Dip:

“O transitório direito posicional de preferência registrária, resultante da prenotação – potior in iure qui priusin tempore ou, mais exatamente, prius in tempore, fortior in tabula – permanece: (a) pelo prazo ordinário de 30 dias; (b) durante o processamento da dúvida (cf. art. 203. LRP); (c) até que se perfaça o registro ou a averbação objeto, a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação.” (os grifos são do autor)

A lei 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos – que estabelecia, na redação vigente até o dia 27 de junho de 2022, a cessação dos efeitos da prenotação após decorridos 30 (trinta) dias de seu lançamento no protocolo – estabelece na redação vigente após o dia 28 de junho de 2022 que:

Art. 205 – Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 20 (vinte) dias da data do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais. 

O procedimento administrativo da execução extrajudicial da alienação fiduciária está regulamentado nos itens 236 e seguintes do capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e, para o que interessa ao presente estudo, suficiente trazer os seguintes itens:

  1. Prenotado e encontrando-se em ordem, o requerimento deverá ser autuado com as peças que o acompanham, formando um processo para cada execução extrajudicial.

[…]

240.1. O prazo de vigência da prenotação ficará prorrogado até a finalização do procedimento. 

240.2 Formulada nota devolutiva pelo registrador no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora, o não atendimento das exigências por omissão do requerente no prazo de 30 dias5 acarretará o arquivamento do procedimento de intimação, com o cancelamento da prenotação.

Temos, assim, que, rigorosamente observada a norma administrativa, a prenotação do requerimento de intimação dará início ao “processo para cada execução extrajudicial” – e, portanto, ao prazo ordinário de 20 dias predito na norma legal, que permanecerá sobrestado “no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora” e da necessidade de comprovação do recolhimento dos tributos devidos – com igual prazo para cumprimento de exigência formulada em nota devolutiva, nesse período – ou até que se perfaça seu objeto, o que coincidirá com a purgação da mora ou com a efetiva consolidação da propriedade – “a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação”.

Dessa forma, ainda que se considere as naturais dificuldades encaradas pelos oficiais registradores e seus prepostos para a intimação pessoal do fiduciante, ultrapassando os desencontros, incertezas cadastrais e ocultações deliberadas – que, muitas das vezes, exigirão a publicação de editais – justificadoras do protraimento do prazo sem o correspondente lastro legislativo, bem como uma autoconcedida “autorização legislativa” de prorrogação normativa do prazo de validade da prenotação inserida pela Corregedoria Geral da Justiça no item 456 e, mais especificamente, no item 240.1 supra transcrito, no capítulo XX das normas de serviço parece-nos evidente que o decurso do prazo quinzenário conferido à purga da mora rematará a protelação conferida, fazendo com que se retome a contagem do prazo legal para a “finalização do procedimento”.

Na doutrina pesquisada, somente BRANDELLI resvalou na questão proposta, da seguinte maneira:

“Apesar de a prenotação do requerimento de intimação ter validade legal de 30 dias (art. 205 da Lei n. 6015/73), neste caso, sua validade será sobrestada pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações, o que poderá importar em inúmeras diligências, bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações.”7 

Reconhece BRANDELLI a necessidade do sobrestamento da prenotação “pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações (grifo nosso) […] bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações”. Pode-se inferir da leitura que, mesmo na doutrina favorável, o eventual sobrestamento não se estende para além da ultimação do prazo para a purga da mora.

  1. Prosseguindo, para a determinação da vigência do prazo de averbação da consolidação da propriedade é imprescindível que seja definido o momento da “finalização do procedimento”.

A nosso juízo, e com vistas às normas legais e à melhor doutrina, havendo o lançamento do requerimento de intimação no Livro de Protocolo, isto é, feita a prenotação, “a finalização do procedimento” ocorrerá com: 

a)  a purgação da mora;

b)  a averbação da consolidação da propriedade ao credor; ou

c)  o não cumprimento de exigência de qualquer natureza pelo credor, regularmente apontada pelo oficial de registro, inclusive comprovação do recolhimento dos impostos devidos. 

A primeira alternativa não requer maior destaque, sendo finalizado o procedimento com o pagamento da dívida dentro do prazo legal deferido para a purgação da mora. Na segunda, “a finalização do procedimento” provirá do averbamento da consolidação da propriedade em nome do credor, após descumprido o prazo de purgação pelo fiduciante regularmente intimado e comprovado o pagamento dos tributos incidentes – respeitado o prazo legal demarcado para a prenotação.

Menos óbvia, a alternativa final reclama maior aprofundamento: “a finalização do procedimento” se dará com a cessação dos efeitos da prenotação pela omissão do interessado em cumprir exigência legal, assim dizendo, no vigésimo dia contado do lançamento do requerimento da intimação no Livro do Protocolo, sobrestado pela expedição da intimação e retomado a partir de ciente o fiduciário do decurso do prazo para pagamento pelo fiduciante, declinada a data inicial e incluída a do término do prazo.

No caso específico de omissão na comprovação de cumprimento da obrigação tributária bastará que se determine o termo inicial da prenotação [dia 1], o dia da expedição da intimação [dia 2] e a data em que o oficial do registro deu ciência ao credor fiduciário do decurso do prazo [dia 3].

A título de exemplo para requerimento protocolado já na vigência da lei que reduziu o prazo da prenotação para 20 dias:

[Dia 1] prenotação em 04/07/2022 (o dia inicial é descartado);

[Dia 2] intimação expedida em 07/07/2022 (já decorridos 3 dias);

[Dia 3] certificação do final do prazo 28/02/2023 (decorrido mais 1 dia). 

A partir de então o credor terá 16 dias (dos 20 dias de prazo de que trata o art. 205 da LRP), com termo final em 16/3/23, para cumprir a exigência, ou seja, comprovar o pagamento dos impostos devidos sob pena de perempção da prenotação e a obrigação de reiniciar o procedimento de execução extrajudicial, conforme demanda a norma administrativa. Cabe realçar que alguns autores entendem que o prazo de cumprimento de exigência no período da prenotação será sempre de vinte dias, o que altera o termo final para 20/3/23, mas em nada altera o raciocínio exposto.  

Na hipótese de garantia fiduciária vinculada a operação de financiamento habitacional deverá ser observada a carência de 30 dias8, após a expiração do prazo de purgação da mora, para a consolidação da propriedade e, nessa hipótese, o [dia 3] corresponderia ao termo final da carência, retomando o prazo limite para a comprovação do recolhimento dos tributos e consolidação da propriedade.

Resta claro do exemplo em comento que o sobrestamento é findo com a certidão e ciência do credor do transcurso do prazo sem purgação da mora pelo fiduciante, retomando a prenotação seu trâmite normal e que a “finalização do procedimento” resultará da comprovação de pagamento dos tributos exigidos e da averbação da consolidação na respectiva matrícula ou, decorrido o prazo legal, do cessamento automático dos efeitos da prenotação.

Cumpre, a respeito do assunto até aqui tratado, ressaltar nosso entendimento de inconstitucionalidade da cobrança do imposto de transmissão (ITBI) na consolidação da propriedade.9

  1. Não bastasse isso, a norma concebida na corregedoria paulista pretende impor ao fiduciário negligente penalidade cabalmente desconectada da estrutura jurídica do instituto ao vedar o prosseguimento da excussão, após decurso do prazo ali fixado e o cancelamento do protocolo por abandono, exigindo a abertura de novo procedimento de execução extrajudicial, como se o deletério descaso do credor tivesse o condão de repristinar o contrato fulminado.

A norma não explicita o que deve ser entendido por “novo procedimento de execução extrajudicial”, contudo, a melhor interpretação será encontrada no item 238 do capítulo XX das mesmas normas de serviço que assim dispõe: “o processo” (sic) de execução extrajudicial será formado com a autuação do requerimento de intimação e das peças que o acompanham”.

Destarte, a aplicação da penalidade tratada no item 250.2, capítulo XX,  das normas de serviço da Corregedoria Geral resultaria na invalidação integral da execução extrajudicial e no restabelecimento do status quo ante, consequentemente no seu refazimento desde o requerimento de intimação do fiduciante e, portanto, no convalescimento  – imediato e irreversível – do contrato de alienação fiduciária e na ressurreição do contrato principal, com o consequente retraimento das obrigações contratuais do fiduciante ao início do período de negligência do fiduciário, inclusive quanto ao vencimento das parcelas e encargos punitivos pelo não pagamento nos prazos originários, atribuindo e acumulando prejuízos ao fiduciante.  

De direito, conforme procedimentos arrolados na lei 9.514/97, a ‘certidão de transcurso de prazo sem purgação da mora’ pelo fiduciante constitui o título administrativo inscritível da consolidação da propriedade, ou seja, da transmutação da propriedade fiduciária em plena (ainda que condicionada), que produz efeitos jurídicos imediatos entre as partes e se perfaz com sua averbação de ofício, independentemente de requerimento ou petição do fiduciário, na matrícula imobiliária correspondente, para a pública exteriorização e ciência daqueles efeitos por terceiros.

Ora, se a consolidação da propriedade em nome do credor decorre – apenas – do transcurso do prazo sem a purgação da mora e essa passagem temporal regularmente certificada pelo oficial competente enseja, reflexamente, a extinção do direito real de aquisição antagônico e a resolução definitiva do contrato principal, ainda que a averbação possa ser obstada ou sobrestada até a efetiva apresentação da prova do pagamento dos tributos incidentes – por se tratar de exigência legal – evidentemente o descumprimento da obrigação fiscal não terá a aptidão de desconstituir as consequências jurídicas dela decorrentes e acima descritas.

Por último, a comprovação do recolhimento dos tributos incidentes não é uma mera exigência de natureza registral para a “finalização do procedimento”, sendo certo que a certificação do decurso de prazo – por si – reconhece e constitui o fato gerador que dá origem à obrigação tributária cujo cumprimento é exigido pela legislação específica, de forma que a ausência de pagamento até a data aprazada (dez ou quinze dias, conforme a interpretação adotada), acarretará a imposição de multas, encargos moratórios e atualização monetária, não sendo da competência da Corregedoria da Justiça, também aqui, dispensar ou postergar o recolhimento desses tributos.

  1. Os resultados nocivos dessa indevida prorrogação concedida ao credor fiduciário pela norma administrativa vão muito além da evidente violação do direito do fiduciante à imediata realização do leilão público para a venda do bem, liquidação da dívida e mediato reembolso do valor sobejante nos termos do art. 27 ‘caput’ e § 4º da lei 9.514/97, produzindo uma sequência de danos e prejuízos materiais e morais ao fiduciante cuja relação de causalidade com o elastecimento do prazo de consolidação da propriedade pode ser facilmente estabelecida.

Sucede que o saldo devedor da dívida será, para fins de determinação do valor de venda, atualizado na data do leilão, incorporando ao débito o valor das parcelas decursadas no período de 120 dias da dilação concedida, com os juros convencionais, penalidades e demais encargos contratuais (§ 3º do art. 27 da lei), vale dizer, independentemente da manutenção da posse do imóvel, o fiduciante responderá, pelas prestações vencidas no decorrer da procrastinação do credor fiduciário e, por absurdo, também pelas multas moratórias e contratuais do não desejado pagamento. Para além disso, serão acumuladas ao total da dívida todas as despesas, prêmios de seguro, encargos legais, tributos e contribuições condominiais também pagas ou incorridas desde a data da certificação do decurso da mora até a data do leilão.

Nada obstante, embora a consolidação – de fato – da propriedade em nome do credor resulte da simples certificação do decurso da mora, com o efeito de resolver – de direito – o contrato principal e extinguir a dívida, o devedor ou fiduciante permanecerá injustamente negativado nos cadastros das entidades de proteção ao crédito por todo esse período, com todo o inconveniente e severos prejuízos de ordem moral resultantes, impossibilitado, por exemplo, a contratação da locação de outro imóvel para sua moradia. 

  1. Por todo o exposto, parece-nos claro e razoável concluir que:

(a)  de acordo com as leis de regência e dos registros públicos vigentes o prazo para a comprovação de recolhimento dos tributos incidentes na consolidação da propriedade deve ser de 20 (vinte dias) contados da prenotação do requerimento de intimação, que será sobrestado a partir da data de expedição da intimação até a data de ciência, por certidão, do decurso de prazo para purgação da mora pelo devedor e fiduciante, sendo então retomado para o cumprimento da exigência legal (comprovação de pagamento dos tributos) até o termo final;

(b) o lapso de 120 (cento e vinte) dias de que trata o item 205 das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não elastece os prazos peremptórios e próprios do fiduciário, devendo ser observado pelos oficiais de registro de imóveis, quando for o caso, para encerramento do protocolo e arquivamento dos autos abandonados;

(c) nada obsta, a nosso juízo, que o oficial de registro proceda ao arquivamento dos autos, por abandono logo após o decurso do prazo de validade da prenotação;

(d) a consolidação da propriedade, assim como a venda do bem em leilão público, são obrigações legais do fiduciário, podendo o devedor e fiduciante exigir sua efetivação, inclusive com antecipação de tutela e fixação de multa para o descumprimento, além da imposição de perdas e danos10;

(e) o fiduciante deve exigir que sejam excluídos do montante da dívida as multas e encargos decorrentes do não pagamento dos tributos no prazo legal, assim como das parcelas de dívidas vencidas no período de negligência do fiduciário, dos encargos tributários e condominiais, não sendo lícita, a nosso juízo, a exigência de taxa de ocupação relativa ao mesmo período.

São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.  


1 Provimento CGJSP nº 37/2013

2 Conforme exposto no XLIV Encontro do Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Curitiba, 2017. https://irib.org.br/files/palestra/xliv-tema-03-maria-carmo1.pdf/

3 Art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942

4 Alvim Neto. José Manuel de Arruda [et al]. Lei dos Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1084.

5 Refere-se o autor ao art. 205 da Lei nº 6015/1973 – LRP

6 Silva, Ulisses da. Direito Imobiliário: O registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2013, p. 151

7 “45. Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação, salvo prorrogação por previsão
legal ou normativa, se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no livro protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender as exigências legais.” (Prov. CGJSP 58/89, cap. XX)

8 Brandelli. Leonardo. Operações Imobiliárias Estruturação e tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95

9 https://www.migalhas.com.br/depeso/381596/a-inconstitucionalidade-do-itbi-na-consolidacao-

10 Arts. 536, § 4º e 815 do Código de Processo Civil.

Alienação fiduciária subsequente ou caução de direito real de aquisição?

Alienação fiduciária subsequente ou caução de direito real de aquisição?

26/10/2023

O direito real de aquisição pode constituir garantia tão útil e eficaz quanto a alienação fiduciária subsequente na outorga, por exemplo, de crédito com prazo menor ao da garantia fiduciária vigente.

 

  1. Para explicitar a possibilidade do registro da alienação fiduciária ‘subsequente’ e da constituição de bem imóvel ‘superveniente’ em garantia, bem como detalhar alguns poucos procedimentos a serem observados na contratação, os legisladores responsáveis pelo Projeto de lei 4.188/21 incluíram nove parágrafos ao texto vigente do art. 22 da lei 9.514/97.

Em rápido resumo cuida a alteração legal proposta de permitir que o fiduciante titular de direitos reais de aquisição decorrente de negócio jurídico de alienação fiduciária de bem imóvel possa contratar a constituição de novas garantias sobre o mesmo imóvel, com o mesmo credor fiduciário ou com terceiros, ficando suspensa a eficácia das alienações fiduciárias ‘subsequentes’ até o cancelamento da precedente e ‘superveniência’ da propriedade plena.

A alienação fiduciária ‘subsequente’ de bem imóvel em garantia que se pretende inserir na lei 9.514/97 em nada difere da alienação fiduciária já tratada no citado art. 22, exceto pelo fato de não haver – no momento da contratação – imóvel a ser alienado e, consequentemente, inexistir garantia ou fidúcia a serem efetivamente constituídas.

Parece complexo, mas é tão simples quanto aquiescer o credor com o pagamento ou garantia de pagamento de dívida lastreado em cheque pré-datado para provisão futura de fundos.

Aliás, a redação original do PL 4.188/21 foi muito criticada e considerada propensa a desentendimentos. Confesso que, quase dois anos passados, atento à confusão que legisladores e articulistas especializados experimentam com os adjetivos “subsequente” (o contrato de alienação fiduciária) e “superveniente” (a propriedade adquirida) mudei de opinião e sonho atualmente com o retorno da expressão inicial “alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente”.           

  1. Na verdade, não há qualquer novidade na matéria.

De fato, nunca houve impedimento legal à contratação da alienação fiduciária de bem imóvel ‘superveniente’, nem ao seu registro, podendo as partes, “atuando no campo da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, convencionarem mútuos ou outros negócios financeiros ou comerciais que se completem com garantia fiduciária cujo registro – imediato – terá efeito meramente assecuratório, condicionada a efetiva constituição ao cancelamento futuro de garantia anteriormente registrada.”1

No mesmo sentido, o insigne advogado Dr. Melhim Chalhub leciona, há pelo menos uma década “ser legalmente possível a constituição de nova propriedade fiduciária ou hipoteca sobre a propriedade superveniente, que o fiduciante vier a adquirir,” bem como, que o contrato “é objeto de registro no Registro de Imóveis, na matrícula do imóvel em questão, por força do art. 167, I, 29, da lei 6.015/73, segundo o qual devem ser registradas a venda pura e a venda condicionada” 2

De igual forma, já em 2011, veio a lume – no enunciado nº 506, aprovado na V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, a possibilidade de “estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc.”

Apesar da inexistência de impedimento legal e da concordância doutrinária e jurisprudencial, a alienação fiduciária ‘subsequente’ não contou com o entusiasmo dos registradores de imóveis e das instâncias administrativas do Poder Judiciário, notadamente no Estado de São Paulo, que entenderam imprescindível o cancelamento da garantia anterior, enquanto inexistente previsão legal específica para o pretendido registro.

Essa destoante rejeição e a crise econômica e financeira que assolou o país a partir de 2015 foram suficientes para o arquivamento do projeto que agora retorna, inserido ao texto original do inebriante “Marco Legal das Garantias”, trazendo a “previsão legal específica para o pretendido registro”, para a tranquilidade dos registradores imobiliários e da Corregedoria de Justiça do Tribunal paulista.

  1. Sobre a redação original do projeto de lei apresentado pela Câmara Federal em meados do ano passado dissemos, há um ano, que:

“Malgrado a redação claudicante e propensa a desentendimentos, os parágrafos 3º a 10 incluídos ao art. 22 da lei 9.514/97 se prestam razoavelmente a evidenciar a possibilidade e as condições de alienação fiduciária do bem imóvel superveniente ou subsequente, registrável na matrícula imobiliária desde a data da celebração do contrato e eficácia mantida suspensa e condicionada à aquisição da propriedade pelo pagamento e ao cancelamento do registro da propriedade fiduciária anterior, e se mostram suficientes para mitigar o risco de um novo negócio jurídico e cumprir as condições de proteção ao crédito impostas pela legislação financeira.”3

O texto foi agora retomado, revisado e aprovado no Senado Federal que alterou substancialmente seus dispositivos originais no parecer final divulgado no dia 05 de julho passado, para, seguindo a tradição daquela casa, torná-los ainda mais obscuros.

Assim, os parágrafos 3º e 4º introduzidos originalmente ao art. 22 da lei, admitiam o registro imobiliário de contrato de “alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente” desde a data de sua celebração, com eficácia ‘ex nunc’, desde o seu registro”, condicionada à efetiva aquisição do imóvel pelo fiduciante.

No entanto, a redação final do referido parágrafo 3º mantém a admissão do registro desde a data da celebração do contrato, para tornar-se eficaz, em transcrição literal, “a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída”, expressão que reaviva antigas divergências doutrinárias e embute os genes da insegurança jurídica e da judiciarização.

A redação original do já então desnecessário parágrafo 5º reiterava o disposto no art. 31 da lei para facultar ao credor beneficiário da garantia ‘superveniente’ a subrogação na propriedade fiduciária, mediante o pagamento da dívida e foi alterada para continuar igualmente prescindível.

Os parágrafos 6º, 7º, 8º e 9º do projeto de lei, que tratam do vencimento antecipado das demais obrigações contratadas no caso de “inadimplemento de quaisquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária”, foram revistos e alterados para tornar dependente de “pacto expresso na alienação fiduciária mais antiga ainda vigente” a declaração do vencimento antecipado dos créditos do mesmo titular. Considerando que o passado “é folha morta” nos parece muito mais plausível e eficaz exigir que as partes pactuem sobre isso nas contratações ‘subsequentes’.

Finalmente, o parágrafo 10º da redação original foi aparentemente suprimido ou substituído pelo 11º do parecer final e ambos dispõem sobre a proteção e subrogação dos credores ‘subsequentes’ no direito à percepção da importância que restar do produto de eventual venda do imóvel em leilão público, inclusive nos casos de recuperação judicial do fiduciante.

  1. Dada a matéria aqui tratada, tomo a liberdade de resgatar tese desenvolvida e exposta no XLIV Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis promovida pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, em Curitiba, no ano de 2017, para cotejar as simetrias entre as características da alienação fiduciária ‘subsequente’ que ressurge no PL 4.188/21 e as do caucionamento do direito real de aquisição atribuído aos fiduciantes na garantia fiduciária, com vistas a proporcionar melhor aproveitamento das garantias e conferir maior segurança jurídica ao credor fiduciário, nas seguintes condições:

(a) o valor do direito real de garantia (DRA) de que trata o art. 1.368-B do Código Civil, aqui cuidado, corresponde exatamente à diferença entre o valor de avaliação ou mercado do imóvel objeto da garantia e o montante do saldo devedor contratado e garantido pela alienação fiduciária;

(b) por ser direito disponível e ter caráter patrimonial, o DRA pode ser cedido, utilizado como garantia de negócios em geral e objeto de constrição judicial, incluído no rol de bens penhoráveis disposto no art. 835 do Código de Processo Civil;

(c) assim como a alienação fiduciária ‘subsequente’ (no pressuposto de que o texto atual venha a ser sancionado) pode ser contratada e a propriedade fiduciária ‘superveniente’ registrada com eficácia suspensa para a garantia de novas operações de crédito, o DRA pode ser caucionado para garantia de novas operações, nos termos dos arts. 17, III e 21 da lei 9.514/77 e averbado na matrícula do imóvel objeto da garantia, conforme admite o inciso 8, item II, do art. 167 da lei 6.015/73, com os efeitos erga omnes e ex tunc dela decorrentes para constituir garantia suficiente aos negócios jurídicos contratados após a constituição da alienação fiduciária originária, conferindo ao credor fiduciário ou a qualquer terceiro segurança tão eficaz quanto a alienação fiduciária ‘subsequente’, por exemplo, na concessão de crédito com prazo inferior ao da alienação fiduciária precedente`;

(d) embora não conste expressamente do projeto de lei em comento, as instituições financeiras haverão de estabelecer exatamente o valor atribuído ao direito real de aquisição e suscetível de caucionamento como limite de crédito, na contratação de alienação fiduciária ‘subsequente’, em respeito às normas financeiras, aos critérios de concessão de créditos e constituição de garantias geralmente aceitos e às políticas de risco que norteiam as operações bancárias;

(e) o registro da alienação fiduciária ‘subsequente’ não implica na oneração do direito real de aquisição que permanecerá passível de cessão, caucionamento etc., em situação que precisará ser administrada com extremo rigor pelo credor que optar pela alienação fiduciária ‘subsequente’;

(f) da mesma forma, a existência de averbação do DRA caucionado não impedirá o registro de alienação fiduciária ‘subsequente’, porém impedirá sua excussão pelo credor fiduciário ‘subsequente’, inclusive quanto ao valor que sobejar à dívida do fiduciário anterior no caso de venda do imóvel em leilão público;  

(g) da constituição de uma alienação fiduciária ‘subsequente’ emergirá simultaneamente um novo direito real de aquisição, também em caráter suspensivo, que subsistirá exposto e sujeito aos interesses de terceiros credores por todo o período contratual, vulnerando a garantia;

(h) na hipótese de descumprimento contratual a caução poderá ser executada a qualquer momento com a excussão dos direitos caucionados e possibilidade de adjudicação pelo credor, independentemente de oferta pública, proporcionando a recomposição do crédito;

(i) na mesma hipótese, eventual execução forçada da alienação fiduciária ‘subsequente’ só poderá ser exercida em tempo futuro e determinado (liquidação do contrato original ou mais antigo ou naquilo que sobejar no leilão público) por constituir direito pessoal com potência de direito real;

(j) finalmente, a própria e desejável situação de regular adimplência contratual na alienação fiduciária precedente potencializa o risco do credor fiduciário ‘subsequente’, na medida em que as amortizações da dívida garantida acrescem valor ao DRA em benefício dos interesses do devedor e de terceiros detentores de direitos caucionados ou, ainda, de terceiros credores eventualmente interessados que poderão valer-se dos meios legais e judiciais de constrição para alcançá-lo.

  1. Apesar dos tropeços legislativos, a alienação fiduciária ‘subsequente’ configura uma chance esperada há muitos anos pelo mercado de crédito imobiliário de performar uma garantia complementar que permita o aproveitamento do dead capital – parcela existente nas garantias fiduciárias que corresponde ao desnível entre o saldo devedor da operação principal garantida e o valor de avaliação do imóvel sobre o qual foi constituída a propriedade fiduciária, que perduraria inexplorado e crescente por todo o período contratual, desperdiçando oportunidades de crédito e garantia.

1 ROCHA, Mauro Antônio. Alienação Fiduciária de bem imóvel – Da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. P. 115.

2 CHALHUB, Melhim Namem. Parecer jurídico sem data, elaborado para a Caixa Econômica Federal, em 2017.

3 ROCHA, Mauro Antônio. Considerações críticas sobre o PL 4.188/21 que institui o Marco Legal das Garantia, publicado no boletim Migalhas, edição de 12/7/02.

Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral

Sobre a judicialização da cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel

Sobre a judicialização da cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel

26/10/2023

A cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de bem imóvel deve ser extrajudicial na forma da lei 9.514/97, exceto se houver intransponível impedimento jurídico-legal para execução na forma da lei.

  1. Ainda na metade do ano – já cansado por acompanhar as novidades que são incorporadas ao direito imobiliário tão-só para turbinar comissões do mercado financeiro e o vaivém do transformado marco das garantias com suas inusitadas e mal redigidas emendas – fui atentado por alunos e colegas para o interessante artigo publicado no boletim Migalhas¹ pelo eminente jurista e professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira sobre a cobrança judicial de dívida com garantia fiduciária e instado a – quiçá – reconsiderar posição contrária a essa possibilidade.

Naquilo que efetivamente nos afasta, o autor entende factível a opção – ao talante do credor – entre a via judicial ou extrajudicial para a execução de dívida garantida por alienação fiduciária em garantia de imóvel, bem como, no processo judicial e “com o mesmo resultado prático”, requerer “a consolidação da propriedade fiduciária” ou “a penhora e a adjudicação do direito real de aquisição do devedor fiduciante na forma da lei processual, caso em que haverá automática consolidação da propriedade”.

  1. Ponderando que a simplicidade e a celeridade do procedimento extrajudicial de execução da garantia fiduciária foram os principais benefícios almejados e sempre destacados pela unanimidade dos especialistas no cotejo com o processo judicial, cabe indagar quais outros interesses afloram e estão a impelir esses credores ao apelo judiciário.

O ilustre professor nos adverte sobre ações de execução intentadas por credores “para cobrar dívidas garantidas por alienação fiduciária no lugar de valer-se da execução extrajudicial da lei 9.514/97” para “asfixiar o devedor” com a penhora de bens e créditos diversos, deixando “de molho” o imóvel onerado e já constrito. Outros credores, aclara, percorrem o caminho judicial ao pressentir que o crédito sobeja o valor do bem constituído em garantia e temer a extinção “do saldo devedor remanescente após a execução do imóvel nos termos do § 5º do art. 27 da lei 9.514/97”.

De plano, o modus operandi apontado na primeira hipótese, além de incompreensível, é obviamente inadmissível em uma operação regular de crédito com garantia fiduciária e externa características extorsivas, expondo o devedor a danos materiais e morais indenizáveis por quem os tenha causado.

Com relação à segunda hipótese não é raro o apelo ao judiciário pelo credor que sabe ser a garantia insuficiente para a liquidação do crédito e tem a pretensão de prosseguir na execução com vistas ao recebimento da diferença entre o valor total da dívida apurada conforme disposto no § 3º do art. 27 da lei 9.514/1997 que supere o valor de avaliação do imóvel incorporado ao patrimônio por força do disposto no § 5º do mesmo artigo, assim como, para a apreciação de situações específicas que envolvam fraudes, desiquilíbrio contratual etc.

Neste ponto, importa ressaltar que, salvo a ocorrência de sinistro que destrua, inutilize ou reduza o valor da garantia sob a responsabilidade do devedor (casos em que o vencimento antecipado da dívida autoriza o credor a optar pelo processo judicial de execução) a eventual insuficiência de garantia escancara a incompetência do credor na formulação de um negócio jurídico em que a lei a ele permite (i) vistoriar para aceitar ou não a garantia oferecida; (ii) definir o valor de mercado do bem; (iii) limitar o crédito à capacidade de pagamento do devedor, desvinculado do valor do imóvel; (iv) apropriar-se plena e definitivamente do bem no caso de ausência de arrematantes em leilão público.

  1. De início, cumpre destacar que o contrato de alienação fiduciária de bem imóvel de que trata a lei 9.514/1997 é acessório e pressupõe a existência de um contrato principal, geralmente – mas não necessariamente – de mútuo em dinheiro.

Pela alienação fiduciária o devedor, ou terceiro garantidor, transfere a propriedade fiduciária do bem imóvel ao credor, sob condição resolutiva vinculada ao pagamento integral da dívida e seus encargos.

É contrato típico, para o qual a lei de regência fornece um conteúdo mínimo, com destaque especial para a obrigatoriedade de cláusula dispondo sobre os procedimentos de intimação válida do fiduciante – nos casos de inadimplemento – da consolidação da propriedade, de venda do imóvel em leilão público para o pagamento do débito e acerto de contas com o fiduciante.

Evidentemente, ao contratar a garantia fiduciária, as partes se obrigam a respeitar os princípios basilares das relações contratuais (probidade e boa-fé), assim como a observar, na hipótese de inadimplemento do contrato principal, o procedimento extrajudicial detalhadamente descrito na lei e transcrito para o contrato acessório, que obriga o credor a oferecer o bem à venda em leilão público e o devedor a aceitar a transmissão plena, incondicionada e definitiva do imóvel ao credor caso negativo o certame, com quitação mútua onde a lei a lei não inova e sem qualquer permissão ou motivação jurídica que justifique, em situação de normalidade, a execução do contrato de garantia fiduciária na via judicial.

A nosso ver, não há que se cogitar da ausência de vedação legal expressa e tampouco se aproveitará o art. 19 da lei 9.514/97 que – para além de regular exclusivamente relações jurídicas decorrentes de cessão fiduciária em garantia, limitação que assoma claramente de simples leitura e interpretação literal ou teleológica de seu texto² – é norma extravagante e não integrante do capítulo II da lei onde estão estabelecidos os procedimentos de constituição, resolução e execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel.

  1. Dos questionamentos enfrentados no citado artigo subsumem, pelo menos, três diferentes situações:

4.1 A primeira diz respeito à pretensão de processar a execução da dívida na via judicial, porém com a utilização dos procedimentos descritos no capítulo II da lei 9.514/97, mantida a garantia fiduciária.

A nosso juízo, a resposta deve ser negativa – exceto na hipótese de comprovado e intransponível impedimento jurídico-legal para a excussão na forma da lei – uma vez que os procedimentos de intimação, consolidação da propriedade e venda do imóvel em público leilão ali descritos compõem um microssistema criado e destinado exclusivamente à execução extrajudicial, dispondo a via judicial de rito próprio para a execução em geral.

4.2 A segunda abarca a intenção de execução da dívida (contrato principal) na via judicial concomitantemente com o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária (contrato acessório) adotado pela lei 9.514/97.

Também aqui a resposta deve ser negativa, dado não haver sentido na dúplice execução proposta para a satisfação de crédito único.

Ademais, ainda que, por absurdo, admitisse as execuções simultâneas – também se afigura equivocada a afirmação de que o credor chegará “ao mesmo resultado prático” se pedir na via judicial a consolidação da propriedade fiduciária ou “a penhora e a adjudicação do direito real de aquisição do devedor fiduciante na forma da lei processual, caso em que haverá automática consolidação da propriedade”.

Parece claro que, nos termos do caput e parágrafos do art. 27, a consolidação da propriedade em nome do credor precede a realização de oferta de venda do imóvel em público leilão pelo valor mínimo correspondente ao montante total da dívida. O sucesso na venda implicará na liquidação e consequente quitação da dívida. O revés na transmissão da propriedade plena e incondicionada do imóvel para o patrimônio do credor, com quitação mútua e sem qualquer inversão de recursos financeiros, salvo as despesas inerentes.

A adjudicação do penhorado direito real de aquisição do fiduciante requer, nos termos do art. 876 do CPC³, oferta de preço não inferior ao da avaliação que, no caso, corresponderá à diferença entre o valor total da dívida e o valor de avaliação do imóvel. A parcela do preço que exceder a dívida será depositado em favor do executado ou quando inferior será amortizado para prosseguimento da execução pelo saldo remanescente4. Haverá, nesta hipótese, inversão efetiva de recursos equivalentes à oferta ou equivalente redução incidente sobre o montante da execução.

No entanto, a “automática consolidação da propriedade”, resultante da confusão5, não desobriga a realização de público leilão, que se fará com as regras comuns da lei 9.514/97 (essa é a proposta) e consequente oferta de venda pelo valor da dívida reduzido pela amortização parcial com alto risco de arrematação por terceiro em prejuízo do credor arrematante.

4.3 Na terceira situação é proposta a possibilidade de renúncia do credor à garantia fiduciária constituída para a execução judicial da dívida.

Somente aqui a resposta será positiva, nada obstando que o credor renuncie formalmente à garantia fiduciária constituída para utilizar-se da via judicial na execução do contrato principal (dívida), desde que previamente notificada ao devedor e ao fiduciante, se for o caso, além de requerido o cancelamento da propriedade fiduciária ao Oficial de Registro competente.

Dessa forma, poderá o credor requerer a penhora de bens do patrimônio do devedor – inclusive do imóvel anteriormente ofertado em garantia – que se apresentem suficientes para o pagamento da dívida.

  1. Concluindo, resta mantido nosso entendimento de que a execução do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, pela inadimplência, deve ser realizada extrajudicialmente na forma dos arts. 26, 26-A e 27 da lei 9.514/97, admitida a via judicial quando comprovado o intransponível impedimento jurídico-legal para a consecução da execução na forma da lei.

As demais exceções citadas neste texto se referem, em verdade, a situações exteriores ao âmbito da alienação fiduciária, tal como a renúncia à garantia fiduciária ou a execução judicial de parcela ou percentual de dívida não abrangida pela garantia.

As presentes considerações foram elaboradas para expor o entendimento do autor, em coerência com parte da doutrina especializada e jurisprudência de nossos Tribunais, como mais um instrumento para o e debate e fortalecimento do estudo do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.


1 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/392244/cobranca-judicial-de-divida-por-alienacao-fiduciaria-de-imovel

2 lei 9514/97. Art. 19. Ao credor fiduciário compete o direito de: I – conservar e recuperar a posse dos títulos representativos dos créditos cedidos, contra qualquer detentor, inclusive o próprio cedente; II – promover a intimação dos devedores que não paguem ao cedente, enquanto durar a cessão fiduciária; III – usar das ações, recursos e execuções, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos e exercer os demais direitos conferidos ao cedente no contrato de alienação do imóvel; IV – receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente.

3 CPC. Art. 876. É lícito ao exequente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer que lhe sejam adjudicados os bens penhorados.

4 CPC. Art.876 […] § 4º Se o valor do crédito for: I – inferior ao dos bens, o requerente da adjudicação depositará de imediato a diferença, que ficará à disposição do executado; II – superior ao dos bens, a execução prosseguirá pelo saldo remanescente.

5 CC. Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.

Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral

A reserva de usufruto no inventário como manobra de planejamento tributário

A reserva de usufruto no inventário como manobra de planejamento tributário

26/10/2023

Maria Aurélia dos Santos Rocha
Trata-se de operação plenamente admitida por nossos Tribunais pátrios, implicando em planejamento e verdadeira economia na tributação de ITCMD, em especial, evitando-se futura incidência desse imposto quando da sucessão do cônjuge supérstite.

Quando ocorre o falecimento de um ente querido, abre-se sua sucessão e consequentemente ocorre a transmissão automática dos bens e direitos a seus sucessores, conforme Princípio de Saisine.

O inventário, que é o processo no qual se realiza o arrolamento e partilha dos bens, direitos e dívidas do falecido, deve ser instaurado dentro do prazo de 60 (sessenta) dias a contar da abertura da sucessão, ou seja, do óbito, conforme preconiza o art. 611 do Novo CPC. Ele tanto pode ser realizado na via judicial como na extrajudicial, ou seja, em Tabelionato de Notas. Nesta última, a lei 11.441/07 exige que as partes sejam capazes (incluído os menores emancipados), haja assessoramento de advogado e não exista testamento (ou se este houver, tenha sido efetivada sua abertura em processo judicial próprio com autorização para sua realização perante o Tabelião).

É nesse momento, que os sucessores elaboram o plano de partilha dos bens com a divisão do monte-mor em quinhões, atribuindo-lhes frações ideais ou propriamente os bens individualmente considerados. E, tornou-se muito comum, a vontade de cônjuges supérstites com idade avançada, de apenas lhes reservar o usufruto dos imóveis em partilha, passando a nua propriedade a seus futuros sucessores.

Essa reserva de usufruto realizada no próprio ato do inventário foi, por diversas vezes, impugnada pela Fazenda Estadual de SP, sob a alegação de se tratar de uma cessão travestida de doação e, sobre a qual, deveria também incidir o ITCMD (Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos), regulamentado pela lei Estadual 10.705/00 no Estado de São Paulo.

Para o Fisco Estadual, num único ato haveriam duas operações distintas, tributáveis ambas com ITCMD: a primeira, na sucessão, ou seja, sobre a parcela de bens e direitos herdados (com exclusão da meação, que já caberia ao cônjuge supérstite); a segunda, na doação da nua propriedade aos herdeiros dos bens que compõem a meação como do quinhão a que o cônjuge supérstite houvesse recebido (em conformidade com o regime de bens que se encontrava casado com o de cujus), com cessão do usufruto dos bens herdados pelos sucessores ao cônjuge supérstite.

Para exemplificar esse entendimento fazendário, imaginemos um patrimônio adquirido sob o regime de comunhão universal de bens totalizando R$600.000,00, sendo R$ 300.000,00 de meação e os outros de R$ 300.000,00, de herança propriamente dita. O primeiro fato gerador do ITCMD é a transmissão do monte mor de R$300.000,00 aos sucessores, com pagamento de imposto de R$ 12.000,00 (4% sobre R$300.000,00). Na sequência, reservando-se o usufruto de todos os bens ao cônjuge supérstite, o Fisco entende ser uma doação da nua propriedade da meação (equivalente a 2/3 de R$ 300.000,00, conforme art. 9º, §2º, item 4, da lei Estadual 10.705/00) pelo cônjuge supérstite aos herdeiros, com pagamento de R$ 8.000,00, bem como cessão do usufruto dos bens herdados (equivalente a 1/3 de R$ 300.000,00, conforme art. 9º, §2º, item 3, da lei Estadual 10.705/00) pelos sucessores ao cônjuge supérstite, com pagamento de R$ 4.000,00. Portanto, a Fazenda Estadual entende haver ITCMD total de R$ 24.000,00.

No entanto, a operação pretendida de reserva de usufruto a meeira muito difere do entendimento fazendário, sobre a qual deverá incidir tão somente a sucessão dos R$ 300.000,00 da herança, com pagamento de R$ 12.000,00, mais a diferença de partilha equivalente a 1/3 de R$ 300.000,00, com pagamento de R$ 4.000,00, totalizando um imposto de ITCMD de R$ 16.000,00.

Ora, não se trata de renúncia de meação, visto que os bens já compõem o patrimônio do cônjuge supérstite.

Também não há que se falar em renúncia abdicativa da herança (também chamada de renúncia pura e simples, na qual há isenção do ITCMD – art. artigo 5º, inciso I, da lei Estadual 10.705/00).

Trata-se de uma especialização do que irá compor a meação do cônjuge supérstite e do que irá constituir a herança. Com efeito, atribui-se o usufruto total dos bens para a meação, enquanto a nua propriedade total dos bens comporá a herança.

Isso porque a meação nada mais é do que a mancomunhão dos bens, que não se confunde com o condomínio civil onde é possível atribuir frações ideais aos envolvidos; assim é um direito inespecífico que, advindo a morte ou separação do cônjuge, pode haver sua especificação em bens determinados (por exemplo, uma determinada aplicação financeira de valor equivalente ao dos imóveis, com atribuição destes aos herdeiros filhos) ou nos direitos de usufruto entre partes maiores e capazes.

Dessa forma, já se reconheceu que não há nenhuma irregularidade na especialização ao cônjuge supérstite da totalidade do usufruto de todos os imóveis, com atribuição aos herdeiros da nua-propriedade dos mesmos imóveis, bastando o consenso entre eles.

Para essa especificação, é de praxe a atribuição de 1/3 do valor do bem ao usufruto e de 2/3 para a nua propriedade, como vem disposto na lei Estadual 10.705/00 para fins de recolhimento de ITCMD em negócios imobiliários, cujo fundamento, diga-se de passagem – é aleatório e não possui qualquer racionalidade. Com efeito, a bem da verdade, “esta proporção não guarda consonância econômica com o proveito que cada um destes institutos proporciona em relação à propriedade plena” (TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2134724-09.2020.8.26.0000, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Designado Luís Mário Galbetti, j. em 2/3/21).

Tratando-se de direitos reais que representam uma parcela, ou desdobramento, da totalidade de poderes insertos na titularidade plena, o juízo de valor representativo destes poderes somente pode ser aferido, rigorosamente, pelo interesse das partes.

Cobrar-se-á nos autos de inventário dos herdeiros apenas o valor correspondente ao imposto causa mortis sobre a metade dos bens (em tese transmitida aos herdeiros) que o finado possuía em conjunto com a viúva e cuja especialização acabou atribuindo, agora, separadamente, a nua-propriedade e usufruto, respectivamente, aos herdeiros e à viúva.

E são diversos os precedentes jurisprudenciais autorizando, na hipótese de partilha amigável, a instituição do usufruto vitalício em favor do viúvo e a atribuição da nua-propriedade em benefício dos herdeiros, na medida em que o direito real de usufruto vitalício reflete expressivo valor econômico (TJ/SP, Agravo de Instrumento 2072203-72.2013.8.26.0000, 6ª Câmara de Direito Privado, Rel. Paulo Alcides, j. em 18/2/14; TJSP, Agravo de Instrumento 2205525-57.2014.8.26.0000, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Milton Paulo De Carvalho Filho, j. em 29/1/15; RJTJESP 65/236; RJTJESP 127/185).

Destarte, trata-se de operação plenamente admitida por nossos Tribunais pátrios, implicando em planejamento e verdadeira economia na tributação de ITCMD, em especial, evitando-se futura incidência desse imposto quando da sucessão do cônjuge supérstite.

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Maria Aurélia dos Santos Rocha
Advogada (FAAP) e engenheira civil (Mackenzie). Especialista em direito registral e notarial e direito do consumidor (Escola Paulista da Magistratura). Sócia fundadora da Academia Nacional de Direito Notarial e Registros Públicos (AD NOTARE).

Instrumento Público ou Particular: Interpretação Sistemática da Forma do Negócio Jurídico

Instrumento Público ou Particular: Interpretação Sistemática da Forma do Negócio Jurídico

26/10/2023

Suse Paula Duarte Cruz Kleiber
Hipótese de alienação de imóvel sob a forma de permuta imobiliária “no local”.

Quando falamos sobre a “possibilidade” de ocorrer algum problema com a aquisição de imóveis, certamente não estamos divagando, pois, nós brasileiros, não somos muito afetos a contratações regulares.

Não à toa mais da metade dos imóveis são irregulares no Brasil, conforme esclareceu o Ministério do Desenvolvimento Regional1, o que fez surgir legislações específicas visando a outorga de títulos e, em alguns casos, de forma extrajudicial (desjudicialização).

Seguindo essa linha, cito rápidos exemplos, como a usucapião constitucional, lei 11.977/09, a qual, prevê a legitimação da posse e sua conversão em propriedade por usucapião via no tabelionato, desde que, preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal.

Posteriormente foi admitida a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião sem ressalvas quanto à sua modalidade (art. 216-A inserido na lei 6.015/73 – Leis dos Registros Públicos, pela lei 13.105/15). E, recentemente a lei 13.485/22, conversão da MP 1.085/21, inseriu o art. 216-B na lei 6.015/73, possibilitando a adjudicação extrajudicial de imóveis.

Abro apenas um parêntese para relembrar que a adjudicação compulsória extrajudicial já vinha prevista no parágrafo 6º. do artigo 26 da Lei 6766/79 e em que pese houvesse discussão acerca da sua extensão, o entendimento majoritário a teor da lição do Desembargador JOSÉ OSÓRIO DE AZEVEDO JR é que “a interpretação que se impõe, a meu ver, é uma só: esse preceito do § 6º, em matéria de loteamento urbano, é genérico, e portanto aplicável a qualquer loteamento e não apenas aos especialíssimos “parcelamentos populares.”(A dispensa de escritura na venda de imóvel loteado. Crítica da orientação do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ano 10, 20, jul-dez/2007, p. 159).

Fechando o parêntese, a questão da regularização e registro de imóveis seja no momento da aquisição ou a posteriori não pode ser dissociada de eventuais surpresas desagradáveis que possam ocorrer: como quando há a venda do mesmo imóvel para mais de uma pessoa, ou quando há ônus e encargos sobre ele, como é o caso de processo judicial em curso e a existência de penhora, o que, pode vir a caracterizar fraude contra credores ou à execução, a depender do momento em que ocorre.

Sucessivas vendas via instrumento particular2 e outras hipóteses mais e por isso, a analise documental e pessoal quando da aquisição de imóveis faz-se tão premente. E à essa analise documental, como é comum no nosso país “americarnizarmos” institutos, chamamos de due diligence, ou seja, um levante de documentos relativos ao imóvel a ser adquirido e a cadeia de vendedores e compradores, amparado no dever geral de cautela, visando identificar riscos. E nesse momento podemos nos deparar com a fraude contra credores ou contra a execução, que pode impactar nos contratos de “Permuta no Local” que será o objeto dessa breve resenha. Feitas essas iniciais considerações para justificar que o contrato de permuta no local que vem disciplinado no art. 39 da lei 4.591/64 e ocorre quando o proprietário de um terreno transfere parte dele para o incorporador e o pagamento se dará através de algumas unidades que serão nele edificadas, ocorrendo a troca do lote por algumas unidades também precisa de cuidados. Bom que se diga que o proprietário não tem qualquer obrigação quanto à construção ou entrega do empreendimento, receberá sua parte (em unidades) quando a promessa de construção for efetivamente cumprida pelo incorporador, quem venderá as unidades na planta.

O proprietário do terreno, assim como os adquirentes das unidades estão à mercê da conclusão da obra pelo incorporador, portanto.

A fraude a credores ocorre quando o devedor sabedor das suas dívidas voluntariamente dilapida seu patrimônio visando exclusivamente não as saldar junto aos seus credores. A fraude à execução, por sua vez, depende da existência de um processo judicial em curso e o regular registro, na matrícula do imóvel, da penhora ou outro ato de constrição judicial ou averbação premonitória ou a prova da má-fé do terceiro adquirente, conforme dispõe o art. 792 do Código de Processo Civil.

Como abordado anteriormente, a maioria não tem o hábito de analisar documentos do imóvel e do vendedor antes de efetuarem aquisições ou permutas e muito menos de efetivar as transações via escritura e contínuo registro no álbum imobiliário, por vezes, até mesmo pelos altos custos deles. Mas o registro da penhora ou de qualquer outro ato de constrição judicial ou da averbação da certidão do ajuizamento de ação de execução contra o proprietário que recaia sobre o imóvel permutado é requisito para que a fraude contra credores seja reconhecida.

Esse entendimento já era Sumulado, Súmula 3753 do Superior Tribunal de Justiça.

Pois bem, o art. 54 da lei 13.097/15, seguindo essa orientação deu extrema importância aos atos que são registrados/averbados na matrícula dos imóveis, fazendo prevalecer a boa-fé do adquirente se nada contiver na matrícula quanto aos ônus.  Todavia, com o posterior advento do art. 792 do Código de Processo Civil, muitos doutrinadores passaram a defender que o art. 54 da lei 13.097/15 havia sido revogado e a boa-fé do adquirente passou a ser presumida, cabendo a prova da má-fé.

E para aumentar a “segurança e dispensa” da apresentação de vasta documentação, talvez até afastando a due diligence, a MP 1.085/21, convertida na lei 14.385/22, incluiu o § 2º. ao art. 54 da lei 13.097/15, que pode ser lido como desobrigação da apresentação das certidões de distribuição forenses, afinal, se o ônus não está averbado/registrado na matrícula ele não existe, bastando para a lavratura da escritura pública os documentos exigidos pela lei 7.433/85, por força do princípio da concentração dos atos na matrícula.

Diz o novel texto: “Art. 54… § 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas: I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da lei 7.433, de 18 de dezembro de 1985; II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais”.

Consoante o tudo quanto dito, entendo ser possível a ocorrência de fraude contra credores ou à execução nos contratos por permuta “no local”, ainda que rara, principalmente se a parte do terreno que ficou para o dono dele não for capaz de saldar débitos e se o empreendimento, por qualquer razão, não for construído e as unidades futuras não pagarem a outra parte dele, podendo caracterizar a sua insolvência.

De tal modo, mesmo com as recentes alterações legislativas mostra-se necessária a realização da due dilligence antes da concretização de qualquer negócio jurídico, mormente quando há investimentos vultuosos e responsabilidades envolvidos, embora, não me soe nada razoável que grandes incorporadoras realizem contrato de permuta “no local” sem avaliarem detalhadamente as condições documentais do terreno, do seu proprietário e antecessores, ainda que o supra mencionado § 2º. do art. 54 da lei 13.097/15 consagre (ou tente consagrar) os princípios da boa-fé do adquirente e da segurança jurídica.

Por fim, insta registrar que o credor/exequente terá que demonstrar a má-fé do terceiro adquirente na aquisição/permuta do bem, quando aquele primeiro não tiver tomado todas as medidas necessárias visando registrar atos de expropriação na matrícula do imóvel, considerando que “a simples existência de ação em curso no momento da alienação do bem não é suficiente para evidenciar a fraude de execução, sendo necessário, caso não haja penhora anterior devidamente registrada, que se prove o conhecimento da referida ação judicial pelo adquirente para que se possa considerar caracterizada a sua má-fé, bem como o conluio fraudulento4”.

E recentemente a 3ª Turma do STJ5, por unanimidade, entendeu “que a transferência de imóvel pelo devedor à filha menor de idade – tornando-se insolvente – caracteriza fraude à execução, independentemente de haver execução pendente ou penhora averbada na matrícula imobiliária, ou mesmo prova de má-fé”.

E a Relatora do recurso no STJ, Min. Nancy Andrighi, ponderou que “a inscrição da penhora no registro do bem não constitui elemento integrativo do ato, mas requisito de eficácia perante terceiros. Por essa razão, o prévio registro da penhora gera presunção absoluta (juris et de jure) de conhecimento para terceiros e, portanto, de fraude à execução caso o bem seja alienado ou onerado após a averbação.” A Ministra ressaltou “que não caberia à empresa comprovar a má-fé da embargante, pois o devedor transferiu seu patrimônio em favor de descendente menor, como maneira de fugir de sua responsabilidade perante os credores e não reconhecer que a execução foi fraudada porque não houve registro de penhora ou da pendência de ação de execução, já que não se cogitou de má-fé da filha, “oportunizaria transferências a filhos menores, reduzindo o devedor à insolvência e impossibilitando a satisfação do crédito do exequente, que também age de boa-fé”.


1 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/07/28/interna-brasil,774183/imoveis-irregulares-no-brasil.shtml

2 STJ analisou caso de vendas sucessivas e fraude à execução no REsp 1863952, Ministra Nancy

Andrighi

3 Súmula 375: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

4 STJ, AgInt no AREsp 1140622/SP; STJ, REsp 661103/SP; STJ, REsp 457768/SP; STJ, REsp

509827/SP e “Embargos de terceiro. Aquisição de imóvel sobre o qual à época do negócio não havia registro de penhora. Inocorrência de prova de que o adquirente sabia do processo em curso contra os alienantes. Presunção de aquisição em boa-fé não descaracterizada. Embargos procedentes. Recurso improvido.” (TJSP, Apelação Cível nº 1010093-69.2019.8.26.0606)

5 STJ,  REsp 1.981.646, disponível em https://www.juruadocs.com/noticias/844-transferencia-de-bem-para-descendente-mesmo-sem-aver, publicado em 17-10-2022, acesso 29-10-2022

 

Suse Paula Duarte Cruz Kleiber
Advogada especialista em Direito Condominial.

Da possibilidade ou não de configuração de fraude contra credores ou fraude à execução

Da possibilidade ou não de configuração de fraude contra credores ou fraude à execução

26/10/2023

Suse Paula Duarte Cruz Kleiber
Hipótese de alienação de imóvel sob a forma de permuta imobiliária “no local”.

 

Quando falamos sobre a “possibilidade” de ocorrer algum problema com a aquisição de imóveis, certamente não estamos divagando, pois, nós brasileiros, não somos muito afetos a contratações regulares.

Não à toa mais da metade dos imóveis são irregulares no Brasil, conforme esclareceu o Ministério do Desenvolvimento Regional1, o que fez surgir legislações específicas visando a outorga de títulos e, em alguns casos, de forma extrajudicial (desjudicialização).

Seguindo essa linha, cito rápidos exemplos, como a usucapião constitucional, lei 11.977/09, a qual, prevê a legitimação da posse e sua conversão em propriedade por usucapião via no tabelionato, desde que, preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal.

Posteriormente foi admitida a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião sem ressalvas quanto à sua modalidade (art. 216-A inserido na lei 6.015/73 – Leis dos Registros Públicos, pela lei 13.105/15). E, recentemente a lei 13.485/22, conversão da MP 1.085/21, inseriu o art. 216-B na lei 6.015/73, possibilitando a adjudicação extrajudicial de imóveis.

Abro apenas um parêntese para relembrar que a adjudicação compulsória extrajudicial já vinha prevista no parágrafo 6º. do artigo 26 da Lei 6766/79 e em que pese houvesse discussão acerca da sua extensão, o entendimento majoritário a teor da lição do Desembargador JOSÉ OSÓRIO DE AZEVEDO JR é que “a interpretação que se impõe, a meu ver, é uma só: esse preceito do § 6º, em matéria de loteamento urbano, é genérico, e portanto aplicável a qualquer loteamento e não apenas aos especialíssimos “parcelamentos populares.”(A dispensa de escritura na venda de imóvel loteado. Crítica da orientação do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ano 10, 20, jul-dez/2007, p. 159).

Fechando o parêntese, a questão da regularização e registro de imóveis seja no momento da aquisição ou a posteriori não pode ser dissociada de eventuais surpresas desagradáveis que possam ocorrer: como quando há a venda do mesmo imóvel para mais de uma pessoa, ou quando há ônus e encargos sobre ele, como é o caso de processo judicial em curso e a existência de penhora, o que, pode vir a caracterizar fraude contra credores ou à execução, a depender do momento em que ocorre.

Sucessivas vendas via instrumento particular2 e outras hipóteses mais e por isso, a analise documental e pessoal quando da aquisição de imóveis faz-se tão premente. E à essa analise documental, como é comum no nosso país “americarnizarmos” institutos, chamamos de due diligence, ou seja, um levante de documentos relativos ao imóvel a ser adquirido e a cadeia de vendedores e compradores, amparado no dever geral de cautela, visando identificar riscos. E nesse momento podemos nos deparar com a fraude contra credores ou contra a execução, que pode impactar nos contratos de “Permuta no Local” que será o objeto dessa breve resenha. Feitas essas iniciais considerações para justificar que o contrato de permuta no local que vem disciplinado no art. 39 da lei 4.591/64 e ocorre quando o proprietário de um terreno transfere parte dele para o incorporador e o pagamento se dará através de algumas unidades que serão nele edificadas, ocorrendo a troca do lote por algumas unidades também precisa de cuidados. Bom que se diga que o proprietário não tem qualquer obrigação quanto à construção ou entrega do empreendimento, receberá sua parte (em unidades) quando a promessa de construção for efetivamente cumprida pelo incorporador, quem venderá as unidades na planta.

O proprietário do terreno, assim como os adquirentes das unidades estão à mercê da conclusão da obra pelo incorporador, portanto.

A fraude a credores ocorre quando o devedor sabedor das suas dívidas voluntariamente dilapida seu patrimônio visando exclusivamente não as saldar junto aos seus credores. A fraude à execução, por sua vez, depende da existência de um processo judicial em curso e o regular registro, na matrícula do imóvel, da penhora ou outro ato de constrição judicial ou averbação premonitória ou a prova da má-fé do terceiro adquirente, conforme dispõe o art. 792 do Código de Processo Civil.

Como abordado anteriormente, a maioria não tem o hábito de analisar documentos do imóvel e do vendedor antes de efetuarem aquisições ou permutas e muito menos de efetivar as transações via escritura e contínuo registro no álbum imobiliário, por vezes, até mesmo pelos altos custos deles. Mas o registro da penhora ou de qualquer outro ato de constrição judicial ou da averbação da certidão do ajuizamento de ação de execução contra o proprietário que recaia sobre o imóvel permutado é requisito para que a fraude contra credores seja reconhecida.

Esse entendimento já era Sumulado, Súmula 3753 do Superior Tribunal de Justiça.

Pois bem, o art. 54 da lei 13.097/15, seguindo essa orientação deu extrema importância aos atos que são registrados/averbados na matrícula dos imóveis, fazendo prevalecer a boa-fé do adquirente se nada contiver na matrícula quanto aos ônus.  Todavia, com o posterior advento do art. 792 do Código de Processo Civil, muitos doutrinadores passaram a defender que o art. 54 da lei 13.097/15 havia sido revogado e a boa-fé do adquirente passou a ser presumida, cabendo a prova da má-fé.

E para aumentar a “segurança e dispensa” da apresentação de vasta documentação, talvez até afastando a due diligence, a MP 1.085/21, convertida na lei 14.385/22, incluiu o § 2º. ao art. 54 da lei 13.097/15, que pode ser lido como desobrigação da apresentação das certidões de distribuição forenses, afinal, se o ônus não está averbado/registrado na matrícula ele não existe, bastando para a lavratura da escritura pública os documentos exigidos pela lei 7.433/85, por força do princípio da concentração dos atos na matrícula.

Diz o novel texto: “Art. 54… § 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas: I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da lei 7.433, de 18 de dezembro de 1985; II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais”.

Consoante o tudo quanto dito, entendo ser possível a ocorrência de fraude contra credores ou à execução nos contratos por permuta “no local”, ainda que rara, principalmente se a parte do terreno que ficou para o dono dele não for capaz de saldar débitos e se o empreendimento, por qualquer razão, não for construído e as unidades futuras não pagarem a outra parte dele, podendo caracterizar a sua insolvência.

De tal modo, mesmo com as recentes alterações legislativas mostra-se necessária a realização da due dilligence antes da concretização de qualquer negócio jurídico, mormente quando há investimentos vultuosos e responsabilidades envolvidos, embora, não me soe nada razoável que grandes incorporadoras realizem contrato de permuta “no local” sem avaliarem detalhadamente as condições documentais do terreno, do seu proprietário e antecessores, ainda que o supra mencionado § 2º. do art. 54 da lei 13.097/15 consagre (ou tente consagrar) os princípios da boa-fé do adquirente e da segurança jurídica.

Por fim, insta registrar que o credor/exequente terá que demonstrar a má-fé do terceiro adquirente na aquisição/permuta do bem, quando aquele primeiro não tiver tomado todas as medidas necessárias visando registrar atos de expropriação na matrícula do imóvel, considerando que “a simples existência de ação em curso no momento da alienação do bem não é suficiente para evidenciar a fraude de execução, sendo necessário, caso não haja penhora anterior devidamente registrada, que se prove o conhecimento da referida ação judicial pelo adquirente para que se possa considerar caracterizada a sua má-fé, bem como o conluio fraudulento4”.

E recentemente a 3ª Turma do STJ5, por unanimidade, entendeu “que a transferência de imóvel pelo devedor à filha menor de idade – tornando-se insolvente – caracteriza fraude à execução, independentemente de haver execução pendente ou penhora averbada na matrícula imobiliária, ou mesmo prova de má-fé”.

E a Relatora do recurso no STJ, Min. Nancy Andrighi, ponderou que “a inscrição da penhora no registro do bem não constitui elemento integrativo do ato, mas requisito de eficácia perante terceiros. Por essa razão, o prévio registro da penhora gera presunção absoluta (juris et de jure) de conhecimento para terceiros e, portanto, de fraude à execução caso o bem seja alienado ou onerado após a averbação.” A Ministra ressaltou “que não caberia à empresa comprovar a má-fé da embargante, pois o devedor transferiu seu patrimônio em favor de descendente menor, como maneira de fugir de sua responsabilidade perante os credores e não reconhecer que a execução foi fraudada porque não houve registro de penhora ou da pendência de ação de execução, já que não se cogitou de má-fé da filha, “oportunizaria transferências a filhos menores, reduzindo o devedor à insolvência e impossibilitando a satisfação do crédito do exequente, que também age de boa-fé”.


1 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/07/28/interna-brasil,774183/imoveis-irregulares-no-brasil.shtml

2 STJ analisou caso de vendas sucessivas e fraude à execução no REsp 1863952, Ministra Nancy

Andrighi

3 Súmula 375: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

4 STJ, AgInt no AREsp 1140622/SP; STJ, REsp 661103/SP; STJ, REsp 457768/SP; STJ, REsp

509827/SP e “Embargos de terceiro. Aquisição de imóvel sobre o qual à época do negócio não havia registro de penhora. Inocorrência de prova de que o adquirente sabia do processo em curso contra os alienantes. Presunção de aquisição em boa-fé não descaracterizada. Embargos procedentes. Recurso improvido.” (TJSP, Apelação Cível nº 1010093-69.2019.8.26.0606)

5 STJ,  REsp 1.981.646, disponível em https://www.juruadocs.com/noticias/844-transferencia-de-bem-para-descendente-mesmo-sem-aver, publicado em 17-10-2022, acesso 29-10-2022

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Suse Paula Duarte Cruz Kleiber
Advogada especialista em Direito Condominial.

ESG e os ODS?S ? A engrenagem perfeita, o que são e como utilizá-los nos mercados condominial e imobiliário

ESG e os ODS?S ? A engrenagem perfeita, o que são e como utilizá-los nos mercados condominial e imobiliário

26/10/2023

Os 17 ODS´s através da implementação do ESG evitaremos a corrupção e com isso a pobreza, a violência, a desigualdade, a instabilidade e descrédito das instituições e governantes.

Vivemos num mundo cujas informações nos atropelam quase que na velocidade da luz. Há tanto por fazer, tanto por aprender. Inovações, facilidades, praticidades e siglas, siglas muitas delas. São normas reguladoras, normas técnicas, artigos de leis nacionais, estaduais, municipais e as principais: ESG e os ODS’s.

Embora soubesse os seus significados percebi o quão importante são e decidi estuda-los com mais profundidade na escola: a IGC1 junto à Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal.

Certamente será necessário muito mais que um artigo de breves linhas para explicá-los, mas a ideia central é chamar a atenção dos mercados condominial e imobiliário para a existência deles e sua urgente implementação nesses meios, afinal, são mais de 68 milhões2 de pessoas que moram em condomínios no Brasil, sem consideramos as que neles trabalham, as empresas que os planejam, os constroem, administram e realizam  transações como as imobiliárias e ainda os cartórios de notas e de registro de imóveis que os trazem à vida jurídica, outorgando-lhes publicidade, autenticidade, segurança e eficácia.

É um número astronômico, portanto, carente de conhecimento emergente do que é o ESG, sua implementação visando atingir os ODS’s.

 Adianto que todas a normas, regras, leis e artigos mencionados acima fazem parte do ESG como verão adiante e, portanto, eles são ao meu sentir o princípio de tudo. Desde quando iniciei nos estudos desse tema me chamou a atenção para trazer para vocês, leitores, uma explanação mais simples e direta deles e do impacto que têm no dia a dia do nosso sistema imobiliário (desde sempre) e do quanto será inevitável a sua  implantação, logicamente através de profissionais habilitados.

Guardem isso: Não levará muito tempo e vocês ouvirão falar demais dos ESG e ODS’s e da necessidade emergencial de implantá-los no seu condomínio e lembrarão desse texto.

Bem, ESG é uma sigla em inglês das palavras environmental, social, and corporate governance, traduzidas  são meio ambiente, social e governança.

O ESG, se presta para reforçar por meio das boas práticas que o meio AMBIENTE, as pessoas (SOCIAL) e a gestão documental (GOVERNANÇA) estão sendo observados e preservados. A proteção ao meio ambiente e à pessoa ficou bem demonstrados acima e a governança vem bem descrita naquelas medidas para impedir a prática de corrupção nas suas mais variadas formas.  São a racioanalidade, legalidade, coerência, transparência.

Os ODS’s são os 173Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e abarcam temas relacionados ao meio ambiente, pessoas, crescimentos econômico e social para a agenda 2030 e que os países signatários se empenharão para cumprimento.

O mais interessante dos ESG e dos ODS’s é que um está intimamente ligado ao outro, ou seja, olhando mais cautelosamente para um, refletirá e alcançará o outro.  Alguns exemplos simples permitirão a vocês fazerem um exercício de aplicação e irradiação dos ODS’s entre si.  Então, vamos a eles:

O que a ODS 1 – Erradicação da pobreza – impacta no nosso dia a dia e nos outros ODS’s?

Se as pessoas ficam longe da pobreza, melhoramos a segurança e tornamos as cidades mais inclusivas = atingimos sem muito esforço dos Ods’s 2, 3, 11, 10 e 16.

Agora vamos colocar esse exercício dentro do seu condomínio: Se nosso colaborador  tem acesso à alimentação e água de qualidade, educação e cidades organizadas (ODS’s 1, 2, 3, 4,6, 8 e 11), terá melhoria no desempenho de suas funções e, portanto, trará benefícios, crescimento e redução de custos para o seu condomínio.

Mais um exemplo: Quando a empresa que presta serviços para o  condomínio em que moramos ou trabalhamos se preocupa com o meio ambiente, com os seus funcionários ela pratica ESG e atinge os ODS’s, em especial, os de números 07,08,09,10,12 e assim por diante.

Outro aspecto importante e que não pode fugir desse exercício: O porteiro que se senta numa cadeira inadequada ou a faxineira que lida com produtos químicos sem proteção, poderão ser acometidos de doenças já que o ambiente de trabalho é insalubre e não cumpre com as medidas ergonômicas. Seu eventual afastamento trará prejuízos financeiros para todos, inclusive com o acionamento do INSS. Além das questões práticas incômodas com a substituição do funcionário etc.

Outras avaliações que parecem singelas, mas são importantíssimas referem-se ao descarte correto do lixo orgânico, do lixo reciclável, consumo consciente de água, energia elétrica. Logicamente, todas essas questões estão relacionadas aos impactos ambientais, de proteção e preservação de nós, seres humanos, mas também se relacionam, inegavelmente à redução de custos.

Não podemos ser hipócritas em acreditar que empresas não buscam lucro e que nós não almejamos pagar menos pelos serviços sem perder a qualidade e a efetivação dessas medidas, certamente gerarão economia.

Analisemos o exemplo do funcionário em ambiente insalubre. Se a ele forem assegurados alimentação, água, moradia, transporte e empregados dignos o empregador terá menos despesas com afastamentos, o sistema de saúde e seguridade arcarão com menos benefícios e assim por diante.

Quando consumimos menos água, temos economia e com isso nos sobra verba para outros investimentos e assim sucessivamente.

Claríssimo que os ODS’s são aplicáveis a toda a cadeia do mercado desde o nascedouro através do projeto e execução pela incorporadora e/ou construtora dos empreendimentos até o presente momento quando abrimos uma torneira. A escolha do material  que será utilizado na construção do empreendimento  começa  pelo ESG (avaliar o impacto ambiental, social e toda documentação legal e financeira evitando a corrupção) incidirá nos ODS’s.

 As tão cobradas NBR’s aplicáveis aos condomínios para que as construções sejam confortáveis e sustentáveis como a de desempenho e de manutenção 15.573/13 e 5674/12, dentre outras é ESG!

Simples compreender, então, que um não escapa ao outro. É uma engrenagem perfeita!

E todas siglas que vimos têm por desiderato proteger os seres humanos, seus direitos e a vida na terra.

Se exigirmos que os nossos direitos e de todos aqueles que nos cercam sejam cumpridos e, portanto, os 17 ODS’s através da implementação do ESG evitaremos a corrupção e com isso a pobreza, a violência, a desigualdade, a instabilidade e descrédito das instituições e governantes.

Cabe a cada um de nós cumprir e fazer com que se cumpra o ESG.

Uma dica preciosa para começar a implementar o ESG no seu ambiente: Chamem as crianças e peçam que façam desenhos de como eles enxergam o condomínio onde moram e depois de como gostariam que ele fosse.

Tenho certeza que vocês perceberão o quanto podem melhorar a suas vidas, a dos seus filhos, vizinhos e aos poucos a do mundo e isso ocorrerá através da aplicação incansável do ESG, a engrenagem perfeita.


1  https://igc.fd.uc.pt/quemsomos.asp?id=1

2  https://www.abcdoabc.com.br/brasil-mundo/noticia/68-milhoes-brasileiros-moram-apartamentos-aponta-pesquisa-205868

3 ODS 1: Erradicação da pobreza: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.

ODS 2: Fome zero e agricultura sustentável: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.

ODS 3 : Saúde e bem-estar: assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.

ODS 4 :Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.

ODS 5 :Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

ODS 6:  Água potável e saneamento: garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos.

ODS 7 :Energia limpa e acessível: garantir acesso à energia barata, confiável, sustentável e renovável para todos.

ODS 8 :Trabalho decente e crescimento econômico: promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos.

ODS 9 :Indústria, inovação e infraestrutura: construir infraestrutura resiliente, promover a industrialização inclusiva e sustentável, e fomentar a inovação.

ODS 10: Redução das desigualdades: reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles.

ODS 11: Cidades e comunidades sustentáveis: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

ODS 12 :Consumo e produção responsáveis: assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.

ODS 13 :Ação contra a mudança global do clima: tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos.

ODS 14: Vida na água: conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.

ODS 15 :Vida terrestre: proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e deter a perda da biodiversidade.

ODS 16 : Paz, justiça e instituições eficazes: promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

ODS 17 :Parcerias e meios de implementação: fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável

A responsabilidade dos notários e registradores à luz da legislação trabalhista

A responsabilidade dos notários e registradores à luz da legislação trabalhista

26/10/2023

Valdeliz Pereira Lopes
Acerca das responsabilidades dos notários e registradores, substitutos ou titulares de serventias à luz da legislação trabalhista, aspectos controvertidos que permitem a responsabilidade solidária ou subsidiária do Estado.

I) Da Delegação pelo Poder Público

Antes da vigência da Constituição Federal de 1988, as atividades notariais e registrais não sofriam intervenção estatal, com isso, os titulares de cartórios asseguravam aos seus herdeiros a transmissão da titularidade da serventia, interpretava-se, portanto, uma certa concessão desses serviços pelo Poder Público sem qualquer fiscalização.

A partir da leitura do texto constitucional em vigência, para o exercício das atividades notariais e registrais, impõe-se ao particular sua submissão a concurso público de provas e títulos para o ingresso da atividade notarial e de registro  (parágrafo 3º do art. 236 da CF). Deste modo, a pessoa natural deve preencher as características previstas no art. 14, da lei 8.935/94 (lei dos cartórios), além da habilitação em concurso público, o diploma de bacharel em Direito, sendo relevante atentar que o exercício dessas atividades é outorgado exclusivamente à pessoa física munida de fé pública, que destina-se a conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia às declarações de, por força do art. 3º da “Lei dos Cartórios” que dispõe acerca das atribuições e competência de cada delegatário.

A partir da previsão constitucional, a lei 8.935/94 veio regulamentar as atividades dos notários e registradores e acerca das responsabilidades civil e criminal, limitou-se a reportar-se às regras do Direito Civil e Penal.

Importante destacar que o texto original do art. 22, com a lei 13.137/15, (Art. 8º) possuía a seguinte redação:1

“Art. 22. Os notários e oficiais de registro, temporários ou permanentes, responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, inclusive pelos relacionados a direitos e encargos trabalhistas, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.” (NR)

A nova redação dada pela lei 13.286/16 consagrou a responsabilidade civil subjetiva do notário e registrador quanto aos atos praticados, porém, frente ao dolo ou culpa de seus prepostos, a sua responsabilidade seria configurada de maneira objetiva, conforme atual redação do art. 22 da lei 8.935/94:2

“Art. 22.  Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. (Redação dada pela lei 13.286, de 2016).”

Parágrafo único.  Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial. (Redação dada pela lei 13.286, de 2016).”

E para o bom desempenho das atividades notariais e de registro, o art. 20 da lei 8.935/94 autoriza a contratação de prepostos (escreventes, dentre eles os substitutos e auxiliares) como empregados, podendo os escreventes praticarem atos mediante autorização de seus notários e registradores. Quanto aos substitutos, estes poderão, simultaneamente, praticar todos os atos que lhes sejam próprios, com exceção, nos tabelionados de notas, lavar testamentos (art. 20  § § 3º 4º 5º).

A nomeação de prepostos têm por objetivo garantir a eficiência do serviço, obtenção de melhores resultados na prestação dos serviços e a promoção da manutenção da paz social. Entretanto, o gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive, no que confere a remuneração de seus prepostos.

 II) Dos Emolumentos

Em razão do permissivo Constitucional previsto no artigo 145 “caput”, em 29 de dezembro de 2000, foi promulgada a lei Federal 10.169/00 que veio regulamentar o parágrafo 2º do art. 236 da CF, estabelecendo normas gerais para a fixação de emolumentos relativo aos atos praticados pelos notários e registradores, onde cada Estado e o Distrito Federal, considerando a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro, legislam acerca dos valores dos emolumentos, classificando cada espécie de ato, mediante fiscalização do Poder Público.

Vale mencionar brevemente a lei 9.492/97, que define a competência e regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida, enquanto a lei 6.015/73, dispõe acerca dos serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Na lição do Professor Marcus Vinicius Kikunaga, em sua obra entitulada “Direito Notarial e Registral à luz do Código de Defesa do consumidor”  é possível classificar a natureza jurídica de cada um desses institutos:

“As leis 8.935/94 e 10.169/00 são normas de natureza principiológicas do sistema por tratarem da estrutura geral das atividades, enquanto as leis 9.492/97 e 6.015/73 são normas de natureza procedimentais, operacionais ou funcionais, respectivamente, das atividades de protesto e títulos públicos do Brasil”.

Destaca-se que é vedado aos oficiais de registros e aos notários, a cobrança de percentual incidente sobre o valor do negócio jurídico, objeto dos serviços notariais e de registro, não havendo cobranças estranhas àquelas constantes das tabelas de emolumentos.

Os valores dos emolumentos são fixados pelos Estados e o Distrito Federal através da Tabela de emolumentos com base na realidade socioeconômica de cada região. Tratando-se de um país de dimensão física continental, o Brasil possui realidades territoriais diversificadas, o que justifica a cobrança diferenciada de emolumentos pelo mesmo ato, quando comparadas as Tabelas de um Estado para o outro.

Na prática, apesar de juridicamente diversa, é comum a utilização do termo custas como sinônimo de emolumentos, posto que mencionados no art. 98, parágrafo 2º da Constituição Federal. Importante tecer em breves linhas, a diferença entre esses institutos, já que “custas” não guarda relação contratual entre o particular, enquanto que, “emolumentos” revelam-se taxas remuneratórias de serviço público, diz-se “serviço público” em decorrência do exercício regular do poder de polícia por parte dos Estados,  nos termos do art. 77 do Código Tributário Nacional e nos termos da lei Federal 10.169/00.

Assim, a  partir da lei Federal 10.169/00, os serviços notariais e de registros, (exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público), tanto os Estados como o Distrito Federal detém competência para legislar acerca dos valores dos emolumentos com base nos atos notariais e registrais e estabeleceu proporcionalidade entre o valor dos emolumentos e o efetivo custo e a adequação da remuneração dos serviços prestados, tais cobranças deve ser fiscalizada pelo Poder Judiciário, considerando a obrigação de repasse de valores à Fazenda Estadual, ao Fundo de Assistência Judiciária Gratuita e para outras entidades, dando origem às taxas de fiscalização de acordo com a lei de cada Estado que dispõe acerca do valor dos emolumentos extrajudiciais.

III) Da ilegitimidade ativa e passiva dos Cartórios

Relevante destacar que as serventias, ou seja, os cartórios, não detém personalidade jurídica de direito, tratam-se de mera repartição administrativa não integrante do Poder Público. Isso porque, a delegação do serviço notarial e de registro é outorgada ao particular (art. 236 da CF).

Logo, não se mostra juridicamente correto referir-se à responsabilidade civil, criminal ou trabalhista dos cartórios, quando estes, não revelam-se pessoas jurídicas.

O art. 75 do Código de Processo Civil traz um rol de pessoas jurídicas que devem ser regularmente presentadas ou representadas em juízo e não traz, não há em seu bojo, a figura da serventia extrajudicial ou dos cartórios, denotando que os mesmos não possuem capacidade ativa ou passiva para figurarem como partes em um processo judicial ou administrativo.

Portanto, as serventias, ou seja, os cartórios não detém personalidade jurídica de direito para figurarem como partes no processo, o que não significa afirmar que seus titulares estejam livres de quaisquer responsabilidades.

IV) Da Responsabilidade pessoal dos delegatários à luz da legislação Trabalhista

A premissa estabelecida no art. 20 da lei 8.935/94, permite aos  notários e registradores, a contratação de escreventes, substitutos, auxiliares, como forma de garantirem o bom funcionamento das serventias, e,  considerando que tais atividades decorrem da delegação do Poder Público de caráter privado,  a intenção do legislador foi direcionar as responsabilidades, sejam elas sob a ótica civil, criminal ou trabalhista à pessoa  física do registrador e do notário.

Considerando que a delegação dos serviços notariais e de registros são de responsabilidade da pessoa física, detentora da fé pública, todos os funcionários contratados pelo delegatário figuram como prepostos (representante voluntário com vínculo de emprego).

Ante a previsão legislativa de contratação de escreventes, substitutos, auxiliares como empregados, com o fim de alcançar um bom desempenho das funções notariais e registrais, imprescindível analisar os limites das responsabilidades que envolvem o titular da serventia quando da contratação de seus funcionários e/ou colaboradores à luz da legislação Trabalhista.

Questiona-se acerca da responsabilidade do substituto de notário e registrador que não tenha se submetido a concurso público, os chamados substitutos comuns (art. 20 parágrafo 4º) e, e na ausência do titular ou por vacância de serventia, os substitutos designados pelo  Poder Judiciário para evitar interrupção do serviço público (art. 2º, parágrafo 5º).

Relevante a análise da  ADIn3 1.183, julgada parcialmente procedente, declarou inconstitucional apenas a interpretação extraída do art. 20 da lei 8.935/94 frente a possibilidade de preposto não concursado, indicado pelo titular ou mesmo pelos tribunais de justiça, de exercer substituições ininterruptas por períodos maiores que 6 meses, nesse sentido:

“O Tribunal, por maioria, conheceu da ação direta e julgou parcialmente procedente o pedido formulado, apenas para declarar inconstitucional a interpretação que extraia do art. 20 da lei 8.935/94 a possibilidade de que prepostos (não concursados), indicados pelo titular ou mesmo pelos tribunais de justiça, possam exercer substituições ininterruptas por períodos maiores de que 6 (seis) meses. Declarou, ainda, que, para essas longas substituições (maiores que 6 meses), a solução constitucionalmente válida é a indicação, como “substituto”, de outro notário ou registrador, observadas as leis locais de organização do serviço notarial e registral, ressalvada a possibilidade de os tribunais de justiça indicarem substitutos “ad hoc”, quando não houver interessados, entre os titulares concursados, que aceitem a substituição, sem prejuízo da imediata abertura de concurso público para preenchimento da(s) vaga(s). Por fim, reconheceu a plena constitucionalidade dos arts. 39, II, e 48 da lei 8.935/94. Tudo nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio, que julgava procedente, em parte, o pedido, para conferir interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 20, cabeça e parágrafos 1º a 4º, da Lei nº 8.935/1994, a fim de assentar a substituição eventual, por preposto indicado pelo titular, do notário ou registrador. Plenário, Sessão Virtual de 28.5.2021 a 7.6.2021.” Relator Ministro Nunes Marques.

Ainda que se trate de delegação do Poder Público, o serviço notarial e registral é prestado em caráter privado, e, sob o prisma da norma constitucional regulamentada pela lei 8.935/94, teoricamente, as responsabilidades pelos atos de seus prepostos ficariam exclusivamente à cargo do titular da serventia dada a sua responsabilidade objetiva, considerando que a fé pública outorgada pelo Poder público é indelegável.

Os atos praticados no exercício das atividades dos prepostos exige por parte dos delegatários o dever de orientar, controlar e  fiscalizar ( culpa in eligendo et in vigilando) , de maneira que, havendo erro por parte do preposto que poderia ter sido evitado se orientado e fiscalizado, haveria a configuração de culpa frente ao ilícito administrativo do delegatário.

As regras de cada instituto é que rege a responsabilidade dos notários e registradores submetidos à legislação civil quando da análise de responsabilidade civil frente à eventuais prejuízos causados a terceiros, inclusive, quando os atos são praticados por seus prepostos, observadas as prescrições e peculiaridade de cada caso concreto, conforme art. 22 da lei 8.935/94.

De igual sorte, sob o aspecto criminal, os titulares respondem quanto aos crimes contra a administração pública decorrente da delegação da atividade pelo Poder público que lhes outorga fé pública aos atos por eles praticados nos termos do art. 24 da referida lei.

E ao final, não menos importante, a responsabilidade trabalhista,  mencionada no art. 20 da lei 8.935/94 que permite aos notários e registradores, a contratação de funcionários para o desempenho de suas funções, visando melhor desempenho na prestação dos serviços públicos, e para essas contratações, via de regra, o regime jurídico será o celetista.

Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho destaca que o Titular do Cartório, pessoa física delegatária da atividade notarial, em decorrência do poder de contratar empregados (prepostos), a relação de emprego deve se estabelecer diretamente com o titular da serventia, ressalta-se, o cartório trata-se apenas de uma repartição administrativa:

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.015/14 E 13.467/17. CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL. AÇÃO AJUIZADA CONTRA OFÍCIO CARTORÁRIO. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DO CARTÓRIO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO TITULAR DO CARTÓRIO. PARTICIPAÇÃO DO TITULAR DO CARTÓRIO NO FEITO PROCESSUAL. Discute-se, no caso, se a legitimidade passiva ad causam em relação aos débitos trabalhistas da empregada contratada para trabalhar em cartório extrajudicial de registros públicos recai sobre o ofício cartorário ou sobre a pessoa física delegatária da atividade notarial, na condição e titular do cartório. Nos termos da Constituição Federal, artigo 236, os serviços notariais e de registro são exercidos por oficiais de registro e seus prepostos, em caráter privado e por meio de delegação do Poder Público, dependendo o ingresso na atividade de regular concurso público de provas e títulos. Por sua vez, a lei 8.935/94, ao regulamentar o art. 236 da Constituição Federal, preceitua que o titular do cartório é quem detém o poder de contratar empregados, sendo, portanto, quem deve responder, exclusivamente, por eventuais débitos trabalhistas decorrentes da relação de emprego, que é estabelecida diretamente com o titular, e não com o cartório em si, pois não detém personalidade jurídica de direito, sendo mera repartição administrativa. Nesse contexto, em tese, no caso dos não prospera a ação originalmente ajuizada contra o Ofício Cartório, pois , destituído de personalidade jurídica, não detém capacidade processual de ser parte, pressuposto subjetivo de existência do processo. Por outro lado, partindo da premissa específica registrada no caso regional, de que a delegatária do Ofício Cartorário, que foi quem admitiu a reclamante e é parte legítima para figurar no polo passivo da ação, na forma dos arts. 236 da Constituição da República e 1º, 3º, 20 e 22 da lei 8.935/94, participou do feito processual em exame, devidamente representada por advogado, e com oportunidade para o exercício do contraditório, inócua a extinção da ação ajuizada contra o Cartório, em respeito ao princípio da economia processual. Precedente. Recurso de revista não conhecido. (TST – RR: 10001072620195020084, Relator: Jose Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 4/5/22, 2ª Turma, Data de Publicação: 6/5/22)

Não se pretende esgotar o tema. Os argumentos legais dependem da análise de cada caso concreto, entretanto, vale destacar algumas hipóteses que envolvem a responsabilidade trabalhista do titular da serventia e possivelmente de seu antecessor.

Hipoteticamente, frente à contratação de um funcionário por parte do antigo titular de uma determinada serventia, e  referido funcionário venha dar continuidade aos serviços em benefício do novo titular dessa mesma serventia, atuando de forma ininterrupta, sem que houvesse a quitação desse contrato de trabalho por parte do titular antecessor, haveria unicidade contratual e responsabilização exclusiva do atual titular da serventia?

Pois bem. Considerando a regra imposta pelo art. 20 da lei 8.932/94, a análise de possível sucessão deve se valer das regras impostas pela Legislação Trabalhista. Para essa situação hipotética, a sucessão trabalhista foi caracterizada por força dos arts. 10, 448 e 448-A e parágrafo único4 incluído pela lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista):

“Art. 10 – Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados.

Art. 448 – A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados.

 Art. 448-A.  Caracterizada a sucessão empresarial ou de empregadores prevista nos arts. 10 e 448 desta Consolidação, as obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor. (Incluído pela lei 13.467, de 2017)

Parágrafo único. A empresa sucedida responderá solidariamente com a sucessora quando ficar comprovada fraude na transferência.”

Isso porque, a Justiça do Trabalho, como representante do poder jurisdicional e da justiça Social, obstante a análise dos elementos essenciais do negócio jurídico conforme preceitua o art. 104 do Código Civil, traçando  interpretação de acordo com os fins sociais e do bem comum.

Ante a possível continuidade (e ininterrupção) na prestação dos serviços em benefício do novo titular da serventia, a regra permeia no fato de que todas as obrigações trabalhistas contraídas pela antiga titularidade da serventia mantenham-se integralmente preservadas frente a qualquer alteração na estrutura jurídica com base no art. 10 da CLT.

Não havendo solução de continuidade, o novo titular da serventia poderá assumir todas as obrigações trabalhistas contraídas pela antiga titularidade, posto que os direitos dos empregados, são integralmente preservados frente a qualquer alteração na estrutura jurídica nos termos dos arts. 10 e 448 da CLT, respondendo por toda e qualquer irregularidade cometida enquanto à serviço do titular antecessor.

V) Hipótese de vacância de serventia

Importante destacar que ao Poder Público compete a fiscalização das atividades notariais e registrais, posto que a delegação é outorgada de forma pessoal à pessoa física titular da serventia o qual assumindo com pessoalidade suas responsabilidades (art. 22 da lei 8.935/94, alterado pela lei 13.286/16). Essa atividade, devido à sua especialidade e à outorga da fé pública, não permite a constituição de pessoa jurídica, inclusive, a fé pública outorgada pelo Poder Público à pessoa física nos termos do art. 236 da CF, é indelegável.

Na hipótese de extinção de delegação, considerando a obrigação do Estado em fiscalizar através das Corregedoria do Tribunal de Justiça, quanto à administração e em caso de vacância da titularidade da serventia, essa responsabilidade é automaticamente devolvida ao Poder Público e enquanto não surgir um novo titular para assumir a serventia pela via do concurso Público, exigência do parágrafo 3º do art. 236 da CF, a responsabilidade permanece  em face do Poder Público.

Nesse caso, o ato de delegação é então praticado pelo Poder Público que continua com a obrigação de fiscalizar, conforme parágrafo 1º do art. 236 da Constituição Federal, arts. 37 e 38 da lei 8.935/94. No momento em que ocorre a extinção da delegação, o poder de administração retorna ao Poder Público que passa a não somente fiscalizar, mas a exercer o ônus de administrar todas atividades durante a vacância da serventia, com dever de cautela em todos os aspectos. Por conta disso, a responsabilidade do Estado é objetiva frente a extinção da delegação que neste caso poderá responsabilizar o Estado pelo inadimplemento dos contratos de trabalho iniciados quando da titularidade extinta e continuados de forma ininterrupta na hipótese de vacância do cargo (culpa in vigilado).

Em caso análogo, o Tribunal Superior do Trabalho, em ação trabalhista movida por ex-funcionária de serventia, decidiu que eventual vacância da titularidade das serventias até a assunção da respectiva unidade por um novo delegado, a serventia retorna à responsabilidade estatal, a quem compete fiscalizar não apenas o exercício da atividade, como também as relações jurídicas decorrentes do serviço (p. ex. contratos de trabalho dos empregados do Tabelionato), deste modo, o Ministro da 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, Relator  Breno Medeiros.5 manteve a condenação acerca da responsabilidade direta do Estado do Rio Grande do Sul pelo adimplemento das verbas trabalhistas devidas à reclamante, “que prestou serviços em proveito do ente público. Referida decisão não transitada em julgado, depende de julgamento em Recurso Extraordinário.

Sob o prisma dessa responsabilidade estatal, o Poder Judiciário Estadual, por força do parágrafo 1º do artigo 236 da CF detém responsabilidade  direta das atividades notarias e registrais e na hipótese de negligenciar a fiscalização e a administração dos contratos trabalhistas, poderá responder pelas obrigações decorrente dessa negligência.

Considerando as hipóteses de extinção da delegação do Poder Público ao notário e ao oficial de registro elencados no art. 39 da lei 8.935/94, é essencial que o Poder Público designe um substituto até a titulação por concurso público. Longas substituições deverão respeitar por indicação de outro notário ou registrador concursado, observadas as leis locais de organização, ressalvadas a nomeação “ad hoc” sem prejuízo de abertura de concurso público. (ADIN 1183).

No que concerne aos contratos trabalhistas iniciados durante a administração do titular da serventia, cuja delegação foi extinta, eventual continuidade na prestação de serviços em período de vacância da serventia e designação de tabelião substituto deverá consistir exclusivamente na garantia de continuidade da prestação dos serviços públicos essenciais até que novo titular assuma a responsabilidade do cartório, por força do parágrafo 2º do art. 39 da lei 8.935/94.

 Em julgamento de ação trabalhista movida por ex-funcionária de serventia, o Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, Décima Turma, Relator Doutor Leonardo Dias Borges, entendeu não haver qualquer responsabilidade trabalhista por parte do Tabelião substituto sobre os contratos em vigor, considerando que sua permanência na serventia decorreu de designação do Tribunal (nesse caso o chamado substituto designado do ‘parágrafo 5º do art. 20), o qual não recebia os lucros gerados pela atividade, que eram destinados ao Estado6, vejamos:

SUCESSÃO TRABALHISTA – MUDANÇA DE TITULARIDADE – FALECIMENTO DO TITULAR DO CARTÓRIO – A designação de tabelião substituto tem o intuito apenas de manter a prestação de serviços público essencial até que novo titular possa assumir a responsabilidade do cartório (art. 39, § 2º, da lei 8.935/94). In casu, há que se considerar que a autora manteve duas relações jurídicas distintas durante o período de prestação de serviços no Cartório do 7º Ofício de Registro de Distribuição. A primeira foi o vínculo empregatício com o Sr. Antônio Carlos Leite Penteado, o qual perdurou da admissão até 12/10/20, data do falecimento deste. A segunda é o liame com o Estado, a contar do falecimento do tabelião titular. (TRT-1 – ROT: 0101007342020501001, Relator: LEONARDO DIAS BORGES, Data de Julgamento: 27/4/22, Décima Turma, Data de Publicação: DEJT 2022-06-16)

Seguindo o entendimento supramencionado, somente ao novo titular caberia decidir com amplos poderes de gerenciamento administrativo e financeiro da serventia acerca da continuidade ou não da prestação de serviços dos empregados contratados pelo anterior delegatário, como se extrai do art. 21 da lei 8.935/94.

Em contraponto ao entendimento supra, há recentes decisões que imputaram responsabilidade trabalhista ao substituto, ainda que a serventia tenha sido assumida de forma precária7, conforme ementas abaixo8:

CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL. FALECIMENTO DO TITULAR. CONTINUIDADE DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PELO EMPREGADO. SUCESSÃO TRABALHISTA. O falecimento do titular do cartório extrajudicial não acarreta a rescisão do contrato de trabalho do empregado, se não há solução de continuidade na prestação de serviços. Ocorre, nesse caso, a sucessão trabalhista, cuja consequência jurídica é a responsabilização do novo tabelião, ainda que a designação tenha se dado a título precário.(TRT-3 – RO: 00109680820185030113 MG 0010968-08.2018.5.03.0113, Relator: Cesar Machado, Data de Julgamento: 13/8/20, Sexta Turma, Data de Publicação: 13/8/20. DEJT/TRT3/Cad.Jud. Página 785. Boletim: Não.)

RECURSO DA PARTE AUTORA SUCESSÃO TRABALHISTA. FALECIMENTO DO TITULAR DE SERVENTIA NOTARIAL. MUDANÇA DA TITULARIDADE DO CARTÓRIO, AINDA QUE DE FORMA INTERINA. Ainda que de natureza diversa de empresa, a assunção das atividades cartoriais, decorrentes de delegação estatal, equipara-se à sucessão trabalhista de que tratam os arts. 10 e 448 da CLT, ficando o atual responsável pela serventia, mesmo que nomeado de modo interino, também pelos direitos trabalhistas inadimplidos pelo anterior, se não ocorre solução de continuidade nessa prestação de serviços. A jurisprudência trabalhista é forte no sentido do reconhecimento da sucessão de empregadores entre titulares de cartório, ainda que interinos. Assim, a vacância na titularidade do cartório, em razão do falecimento do antigo tabelião, não afasta os requisitos para o reconhecimento da sucessão. Apelo desprovido.(TRT-1 – RO: 01001503120215010541 RJ, Relator: EDUARDO HENRIQUE RAYMUNDO VON ADAMOVICH, Data de Julgamento: 21/7/21, Terceira Turma, Data de Publicação: 24/8/21)

Relevante atentar às contratações embasadas no Provimento 134, de 24 de agosto de 2022 o qual passa exigir a figura do “Encarregado” que será designado pelo titular das serventias e será o responsável pelo tratamento de dados pessoais, conforme art. 41 da LGPD e art. 10º do Provimento.

A nomeação do Encarregado se fará mediante contrato escrito e não afastará deveres e obrigações do responsável pela delegação os serviços extrajudiciais de notas e de registro.

E, por não haver óbice para contratação de um mesmo encarregado para mais de uma serventia, o contrato escrito deverá atentar às regras de responsabilidades civis, criminais e trabalhistas, sob pena de caracterizar sucessão ou responsabilidade solidária dentre as serventias que compartilharem os serviços desses prepostos denominados encarregados.

Destaca-se que a responsabilidade do Estado será objetiva quando a responsabilidade notarial e registral antes delegada retoma ao poder do Estado quando da extinção da delegação, permitindo concluir a possibilidade da responsabilidade solidária do Estado frente a obrigação de fiscalizar por força do art. 236 da Constituição Federal.

Conclui-se, portanto, acerca das responsabilidades dos notários e registradores, substitutos ou titulares de serventias à luz da legislação trabalhista, aspectos controvertidos que permitem a responsabilidade solidária ou subsidiária  do Estado junto aos contratos de trabalho firmados pelos delegatários quando da contratação dos prepostos, considerando os Princípios norteadores do Direito do Trabalho vinculados aos Princípios constitucionais da Dignidade da pessoa humana (art. 1º , III) , da valorização do Trabalho (art. 1º, IV), da  verdade real e da continuidade da relação de emprego.


1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13137.htm

2 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm

3 https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1605752

4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm

5 https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=21052&digitoTst=18&anoTst=2016&orgaoTst=5&tribunalTst=04&varaTst=0402&submit=Consultar

6 (TRT-1 – ROT: 0101007342020501001, Relator: LEONARDO DIAS BORGES, Data de Julgamento: 27/04/2022, Décima Turma, Data de Publicação: DEJT 2022-06-16)

7 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trt-3/1142401827

8 https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trt-1/1269456303

 

Valdeliz Pereira Lopes
Advogada especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho; Direito Imobiliário e Condominial.

Os atores trazidos pelo provimento 134 do CNJ e a linha tênue entre o vínculo empregatício e a pejotização

Os atores trazidos pelo provimento 134 do CNJ e a linha tênue entre o vínculo empregatício e a pejotização

26/10/2023

Valdeliz Pereira Lopes
Resta possível a designação de um mesmo Encarregado para mais de uma serventia, entretanto, imprescindível a inexistência de conflito na cumulação de funções e a manutenção da qualidade dos serviços prestados.

O Provimento 134 do CNJ traz medidas que devem ser adotadas pelas serventias extrajudiciais para adequação à LGPD e exigem a figura do Controlador, Encarregado e o Operador mediante contrato escrito com cláusulas específicas que resguardem os limites da responsabilidade do Delegatário.

I. Da Lei Geral de Proteção de Dados ao Sistema Eletrônico de Registros Públicos

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/18)1 veio dispor acerca do tratamento de dados pessoais, nos meios físicos ou digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, e tem por finalidade proteger os direitos fundamentais, de maneira que os titulares desses dados utilizem de forma segura.

A partir da MP 1.085/21, conhecida como “a MP dos cartórios” convertida na lei 14.382/22, revelou-se inovadora quando instituiu o SERP – Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, com a pretensão de modernizar e simplificar os procedimentos relativos aos atos e negócios jurídicos previstos na lei 6.015/73.

Entretanto, para a implantação, planejamento e funcionamento do SERP, há necessidade de criar um grupo de trabalho para elaboração de um estudo que disciplinará a atuação da pessoa jurídica de direito privado que será responsável pela operacionalização do sistema.2

Considerando a necessidade de regulamentar as disposições da lei 13.709/18 (LGPD) estabeleceu-se medidas a serem adotadas pelas serventias extrajudiciais em âmbito nacional através do Provimento 134/22 do CNJ3 e conforme art. 3º criou-se no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, a Comissão de Proteção de Dados CPD/CN/CNJ, responsável por traçar diretrizes para aplicação, interpretação e adequação das Serventias à LGPD seja de forma espontânea ou mediante provocação por parte das Associações.

II. Os atores trazidos pelo Provimento 134/22 do CNJ e suas peculiaridades

Segue, portanto, a análise da figura do “Controlador” que, necessariamente, deverá ser o próprio delegatário, titular da serventia, interventor ou interino, único detentor da fé pública, nos termos do art. 3º da lei 8.935/944 conferido pelo art. 236 da Constituição Federal.

Ao “Controlador” compete a tomada de decisões referente ao tratamento de dados pessoais, responsável por administrar e contratar pessoas por força do art. 20 da lei 8.935/94 que, pelo Princípio da Liberdade Funcional, também tem a faculdade de contratação de empresas para as atividades de “tratamento” que envolvam os dados pessoais dos usuários das serventias nos termos do art. 5º, X da LGPD, que consiste em coleta, distribuição, recepção, processamento, arquivamento, armazenamento e transferência de dados. Esse “operador” é mencionado no art. 5º do Provimento 134/22.

O art. 41 da LGPD5 determina que o “controlador” indique, contrate ou nomeie um “Encarregado” pelo tratamento de dados pessoais, cuja identidade deverá ser divulgada publicamente no sítio eletrônico do “Controlador”. Para o exercício das funções de “Encarregado” poderá o delegatário contratar um prestador de serviços, seja ele pessoa física ou jurídica, desde que apto ao exercício da função, podendo ser objeto de terceirização.

Importante destacar que a função do “Encarregado” não se confunde com a do “Controlador”, sendo imprescindível que a contratação do “Encarregado” se faça mediante contrato escrito (art. 10º)6 o qual deverá ser mantido arquivado em classificador próprio, sendo do Controlador a responsabilidade exclusiva para a nomeação da figura do Encarregado, não podendo se olvidar da responsabilidade imposta pelo art. 22 da lei 8.935/94.

Os parágrafos 1º e 2º do art. 10 do Provimento, autorizam o compartilhamento da figura do Encarregado dentre as serventias classificadas como “Classe I” e “Classe II” (Provimento 74/18 do CNJ)7 que, segundo orientação legislativa, será designado de maneira conjunta, ou seja , livre escolha ou subsidiado pelas entidades de classe. Nesse caso, a responsabilidade frente a culpa ou dolo envolvendo os atos do Encarregado poderá ser solidária dentre os Controladores, cujo Encarregado tenha sido compartilhado.

III. Do contrato escrito para a figura do Encarregado

O Colégio Registral de Minas Gerais juntamente com o Sindicato dos Oficiais de Registro Civil cuidaram em publicar orientações acerca do Provimento 134 do CNJ8. Em seu bojo, oferecem e indicam uma pessoa física, vinculada ao sindicato que, de forma gratuita, exerceria o cargo de Encarregado, bastando o delegatário solicitar referida pessoa por e-mail endereçado ao Sindicato.

Importante destacar que o Provimento 134/22 é bem claro quando dispõe em seu art. 10 que a contratação do Encarregado deve ocorrer mediante “contrato escrito”, podendo o delegatário terceirizar o exercício dessa função mediante contratação de prestador de serviços, pessoa física ou pessoa jurídica, “desde que apto ao exercício da função” (art. 10, I).

Não se deve desprezar o fato de que o delegatário é o responsável por eventuais prejuízos que causarem a terceiros, por dolo o culpa, essa responsabilidade alcança os prejuízos causados por seus prepostos (art. 22 da lei 8.935/94)9 e, cabe lembrar que a função do Encarregado é nomeada pelo Controlador que nada mais é que o próprio delegatário da serventia, portanto, não se pode desprezar o fato de que, os atos praticados pelo Encarregado também são de responsabilidade do Controlador, o delegatário, que por força do art. 236 da Constituição Federal, é o detentor da fé pública, a qual não deve ser delegada.

Irrelevante a figura do Encarregado como pessoa física ou jurídica, o fato é que, a responsabilidade civil, criminal e trabalhista continua vinculada àquele Controlador que o nomeou. Portanto, imprescindível observar todas as cláusulas contratuais celebrada com empregados ou prestadores de serviços, devendo o referido contrato prever a responsabilização do agentes que tenha envolvimento com atividades de tratamento de dados pessoais. Nesse caso, quando da nomeação do Encarregado, dada a importante função vinculada à proteção dos dados sensíveis, deve o Controlador atentar às cláusulas de responsabilidades, frente aos atos de seus prepostos no exercício das funções contratadas.

IV. A Tênue linha entre a Pejotização e o vínculo de emprego

A “Pejotização” nada mais é que a tentativa de mascarar um vínculo de emprego através da prestação de serviços de uma pessoa física, utilizando-se de uma pessoa jurídica.

A jurisprudência majoritária trabalhista considera a “Pejotização ” uma manobra fraudulenta que visa burlar os direitos trabalhistas do prestador dos serviços e, com fundamento no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, considera ” nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar os preceitos contidos na presente Consolidação”.

Vale ressaltar, a prática da “pejotização” não é necessariamente ilegal, desde que seja feita de acordo com a legislação trabalhista vigente. No entanto, a legislação estabelece critérios que distingue o trabalhador autônomo legítimo àquele que, de forma inadequada, busca mascarar uma verdadeira relação de emprego.

A nomeação de um Encarregado sem qualquer contraprestação financeira não revela melhor forma de resolver a tênue linha que separa a Pejotização, do vínculo de emprego. Eventual gratuidade na prestação desses serviços não teria sentido algum, ante a exacerbada responsabilidade no exercício do cargo de Encarregado que o vincula à proteção de dados sensíveis, sob a responsabilidade do Controlador, único detentor da fé pública.

O inciso IV do art. 10º do Provimento 134/22, não afasta o dever do atendimento pelo responsável pela delegação dos serviços extrajudiciais de notas e de registros, quando este for solicitado pelo titular dos dados pessoais, ainda com a nomeação de um Encarregado e, apesar de não haver óbice para a contratação, independentemente de haver um mesmo Encarregado para outras serventias, reza o parágrafo 1º do artigo 41 da LGPD que a identidade do encarregado deve ficar atrelada ao sítio eletrônico do controlador, portanto, sua nomeação deve, obrigatoriamente, ser ampla e publicamente divulgada, sendo indispensável treinar e capacitar os prepostos, com o fim de evitar vazamento de dados e prejuízos às atividades dos delegatários.

A nomeação do Encarregado através de um contrato de prestação de serviços com pessoa física ou jurídica é irrelevante. O que se deve observar é o vínculo que a nomeação do Encarregado vai criar com a identidade do delegatário que o nomeou, e dependendo das cláusulas constantes do contrato escrito, poderá ou não ser reconhecido o vínculo empregatício do Encarregado junto ao controlador.

Inobstante o permissivo legal de terceirização do exercício da função do Encarregado mediante a contratação de prestador de serviços, referida nomeação não retira do Controlador a obrigação acerca do atendimento quando solicitado pelo titular dos dados pessoais.

Resta possível a designação de um mesmo Encarregado para mais de uma serventia, entretanto, imprescindível a inexistência de conflito na cumulação de funções e a manutenção da qualidade dos serviços prestados.


1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

2 https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4809

3 https://atos.cnj.jus.br/files/original1413072022082563078373a0892.pdf

4 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm

5 Art. 41. O controlador deverá indicar encarregado pelo tratamento de dados pessoais. § 1º A identidade e as informações de contato do encarregado deverão ser divulgadas publicamente, de forma clara e objetiva, preferencialmente no sítio eletrônico do controlador.

6 III – a nomeação do Encarregado será promovida mediante contrato escrito, a ser arquivado em classificador próprio, de que participarão o controlador na qualidade de responsável pela nomeação e o Encarregado; e IV – a nomeação de Encarregado não afasta o dever de atendimento pelo responsável pela delegação dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, quando for solicitado pelo titular dos dados pessoais.

7 https://atos.cnj.jus.br/files//provimento/provimento_74_31072018_01082018113730.pdf

8 https://recivil.com.br/wp-content/uploads/2022/09/Orientacoes-Provimento-134-CNJ-Versao-Final.pdf

9 Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. (Redação dada pela Lei nº 13.286, de 2016)

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Valdeliz Pereira Lopes
Advogada especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho; Direito Imobiliário e Condominial.