Quinta, 26 de outubro de 2023
Suse Paula Duarte Cruz Kleiber
Hipótese de alienação de imóvel sob a forma de permuta imobiliária “no local”.
Quando falamos sobre a “possibilidade” de ocorrer algum problema com a aquisição de imóveis, certamente não estamos divagando, pois, nós brasileiros, não somos muito afetos a contratações regulares.
Não à toa mais da metade dos imóveis são irregulares no Brasil, conforme esclareceu o Ministério do Desenvolvimento Regional1, o que fez surgir legislações específicas visando a outorga de títulos e, em alguns casos, de forma extrajudicial (desjudicialização).
Seguindo essa linha, cito rápidos exemplos, como a usucapião constitucional, lei 11.977/09, a qual, prevê a legitimação da posse e sua conversão em propriedade por usucapião via no tabelionato, desde que, preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal.
Posteriormente foi admitida a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da usucapião sem ressalvas quanto à sua modalidade (art. 216-A inserido na lei 6.015/73 – Leis dos Registros Públicos, pela lei 13.105/15). E, recentemente a lei 13.485/22, conversão da MP 1.085/21, inseriu o art. 216-B na lei 6.015/73, possibilitando a adjudicação extrajudicial de imóveis.
Abro apenas um parêntese para relembrar que a adjudicação compulsória extrajudicial já vinha prevista no parágrafo 6º. do artigo 26 da Lei 6766/79 e em que pese houvesse discussão acerca da sua extensão, o entendimento majoritário a teor da lição do Desembargador JOSÉ OSÓRIO DE AZEVEDO JR é que “a interpretação que se impõe, a meu ver, é uma só: esse preceito do § 6º, em matéria de loteamento urbano, é genérico, e portanto aplicável a qualquer loteamento e não apenas aos especialíssimos “parcelamentos populares.”(A dispensa de escritura na venda de imóvel loteado. Crítica da orientação do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ano 10, 20, jul-dez/2007, p. 159).
Fechando o parêntese, a questão da regularização e registro de imóveis seja no momento da aquisição ou a posteriori não pode ser dissociada de eventuais surpresas desagradáveis que possam ocorrer: como quando há a venda do mesmo imóvel para mais de uma pessoa, ou quando há ônus e encargos sobre ele, como é o caso de processo judicial em curso e a existência de penhora, o que, pode vir a caracterizar fraude contra credores ou à execução, a depender do momento em que ocorre.
Sucessivas vendas via instrumento particular2 e outras hipóteses mais e por isso, a analise documental e pessoal quando da aquisição de imóveis faz-se tão premente. E à essa analise documental, como é comum no nosso país “americarnizarmos” institutos, chamamos de due diligence, ou seja, um levante de documentos relativos ao imóvel a ser adquirido e a cadeia de vendedores e compradores, amparado no dever geral de cautela, visando identificar riscos. E nesse momento podemos nos deparar com a fraude contra credores ou contra a execução, que pode impactar nos contratos de “Permuta no Local” que será o objeto dessa breve resenha. Feitas essas iniciais considerações para justificar que o contrato de permuta no local que vem disciplinado no art. 39 da lei 4.591/64 e ocorre quando o proprietário de um terreno transfere parte dele para o incorporador e o pagamento se dará através de algumas unidades que serão nele edificadas, ocorrendo a troca do lote por algumas unidades também precisa de cuidados. Bom que se diga que o proprietário não tem qualquer obrigação quanto à construção ou entrega do empreendimento, receberá sua parte (em unidades) quando a promessa de construção for efetivamente cumprida pelo incorporador, quem venderá as unidades na planta.
O proprietário do terreno, assim como os adquirentes das unidades estão à mercê da conclusão da obra pelo incorporador, portanto.
A fraude a credores ocorre quando o devedor sabedor das suas dívidas voluntariamente dilapida seu patrimônio visando exclusivamente não as saldar junto aos seus credores. A fraude à execução, por sua vez, depende da existência de um processo judicial em curso e o regular registro, na matrícula do imóvel, da penhora ou outro ato de constrição judicial ou averbação premonitória ou a prova da má-fé do terceiro adquirente, conforme dispõe o art. 792 do Código de Processo Civil.
Como abordado anteriormente, a maioria não tem o hábito de analisar documentos do imóvel e do vendedor antes de efetuarem aquisições ou permutas e muito menos de efetivar as transações via escritura e contínuo registro no álbum imobiliário, por vezes, até mesmo pelos altos custos deles. Mas o registro da penhora ou de qualquer outro ato de constrição judicial ou da averbação da certidão do ajuizamento de ação de execução contra o proprietário que recaia sobre o imóvel permutado é requisito para que a fraude contra credores seja reconhecida.
Esse entendimento já era Sumulado, Súmula 3753 do Superior Tribunal de Justiça.
Pois bem, o art. 54 da lei 13.097/15, seguindo essa orientação deu extrema importância aos atos que são registrados/averbados na matrícula dos imóveis, fazendo prevalecer a boa-fé do adquirente se nada contiver na matrícula quanto aos ônus. Todavia, com o posterior advento do art. 792 do Código de Processo Civil, muitos doutrinadores passaram a defender que o art. 54 da lei 13.097/15 havia sido revogado e a boa-fé do adquirente passou a ser presumida, cabendo a prova da má-fé.
E para aumentar a “segurança e dispensa” da apresentação de vasta documentação, talvez até afastando a due diligence, a MP 1.085/21, convertida na lei 14.385/22, incluiu o § 2º. ao art. 54 da lei 13.097/15, que pode ser lido como desobrigação da apresentação das certidões de distribuição forenses, afinal, se o ônus não está averbado/registrado na matrícula ele não existe, bastando para a lavratura da escritura pública os documentos exigidos pela lei 7.433/85, por força do princípio da concentração dos atos na matrícula.
Diz o novel texto: “Art. 54… § 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas: I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da lei 7.433, de 18 de dezembro de 1985; II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais”.
Consoante o tudo quanto dito, entendo ser possível a ocorrência de fraude contra credores ou à execução nos contratos por permuta “no local”, ainda que rara, principalmente se a parte do terreno que ficou para o dono dele não for capaz de saldar débitos e se o empreendimento, por qualquer razão, não for construído e as unidades futuras não pagarem a outra parte dele, podendo caracterizar a sua insolvência.
De tal modo, mesmo com as recentes alterações legislativas mostra-se necessária a realização da due dilligence antes da concretização de qualquer negócio jurídico, mormente quando há investimentos vultuosos e responsabilidades envolvidos, embora, não me soe nada razoável que grandes incorporadoras realizem contrato de permuta “no local” sem avaliarem detalhadamente as condições documentais do terreno, do seu proprietário e antecessores, ainda que o supra mencionado § 2º. do art. 54 da lei 13.097/15 consagre (ou tente consagrar) os princípios da boa-fé do adquirente e da segurança jurídica.
Por fim, insta registrar que o credor/exequente terá que demonstrar a má-fé do terceiro adquirente na aquisição/permuta do bem, quando aquele primeiro não tiver tomado todas as medidas necessárias visando registrar atos de expropriação na matrícula do imóvel, considerando que “a simples existência de ação em curso no momento da alienação do bem não é suficiente para evidenciar a fraude de execução, sendo necessário, caso não haja penhora anterior devidamente registrada, que se prove o conhecimento da referida ação judicial pelo adquirente para que se possa considerar caracterizada a sua má-fé, bem como o conluio fraudulento4”.
E recentemente a 3ª Turma do STJ5, por unanimidade, entendeu “que a transferência de imóvel pelo devedor à filha menor de idade – tornando-se insolvente – caracteriza fraude à execução, independentemente de haver execução pendente ou penhora averbada na matrícula imobiliária, ou mesmo prova de má-fé”.
E a Relatora do recurso no STJ, Min. Nancy Andrighi, ponderou que “a inscrição da penhora no registro do bem não constitui elemento integrativo do ato, mas requisito de eficácia perante terceiros. Por essa razão, o prévio registro da penhora gera presunção absoluta (juris et de jure) de conhecimento para terceiros e, portanto, de fraude à execução caso o bem seja alienado ou onerado após a averbação.” A Ministra ressaltou “que não caberia à empresa comprovar a má-fé da embargante, pois o devedor transferiu seu patrimônio em favor de descendente menor, como maneira de fugir de sua responsabilidade perante os credores e não reconhecer que a execução foi fraudada porque não houve registro de penhora ou da pendência de ação de execução, já que não se cogitou de má-fé da filha, “oportunizaria transferências a filhos menores, reduzindo o devedor à insolvência e impossibilitando a satisfação do crédito do exequente, que também age de boa-fé”.
1 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/07/28/interna-brasil,774183/imoveis-irregulares-no-brasil.shtml
2 STJ analisou caso de vendas sucessivas e fraude à execução no REsp 1863952, Ministra Nancy
Andrighi
3 Súmula 375: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
4 STJ, AgInt no AREsp 1140622/SP; STJ, REsp 661103/SP; STJ, REsp 457768/SP; STJ, REsp
509827/SP e “Embargos de terceiro. Aquisição de imóvel sobre o qual à época do negócio não havia registro de penhora. Inocorrência de prova de que o adquirente sabia do processo em curso contra os alienantes. Presunção de aquisição em boa-fé não descaracterizada. Embargos procedentes. Recurso improvido.” (TJSP, Apelação Cível nº 1010093-69.2019.8.26.0606)
5 STJ, REsp 1.981.646, disponível em https://www.juruadocs.com/noticias/844-transferencia-de-bem-para-descendente-mesmo-sem-aver, publicado em 17-10-2022, acesso 29-10-2022
Suse Paula Duarte Cruz Kleiber
Advogada especialista em Direito Condominial.