Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade

Quinta, 26 de outubro de 2023 Leitura: 10

Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade

 Mauro Antônio Rocha [*] 

Uma incompreensível exigência de prova do pagamento do ITBI inserida na Lei 9514/97 atrelou ao procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor a inconstitucional imposição de pagamento do imposto. 

 

 1. Como é sabido, a alienação fiduciária regulada pela Lei nº 9.514/1997 é o negócio jurídico que transfere ao fiduciário a propriedade resolúvel de coisa imóvel, com o escopo de garantiade outro negócio jurídico, simultâneo ou precedente, de qualquer ordem. A propriedade fiduciária que emana da inscrição do título no competente Registro de Imóveisii não se equipara, para quaisquer efeitos, à propriedade plenaiii, remanescendo na titularidade do fiduciante o direito real de aquisição do bemiv e, por sua natureza jurídica de direito real de garantia, está exceptuada da incidência do imposto de transmissão de bem imóvel – ITBI. 

A não incidência do mencionado tributo advém de expresso aparte estabelecido no inciso II do artigo 156 da Constituição Federalv, replicado no inciso II do artigo 35 do Código Tributário Nacionalvi, da condição resolutiva contida na transmissão fiduciária e, principalmente, da vontade política de não sobrepesar o custo operacional das transações no mercado de créditos. 

De modo igual e pelas mesmas razões, também não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia, que será efetuado com a mera apresentação ao oficial do Registro de Imóveis do termo de quitação fornecido pelo fiduciário. 

Ocorrem, no entanto, situações em que a resolução da propriedade fiduciária decorre do inadimplemento de obrigação contratual pelo fiduciante, circunstância prevista e regida no art. 26 da Lei nº 9.514/1997, através da dação em pagamento ou da consolidação da propriedade em nome do fiduciário com a consequente e compulsória venda do imóvel em leilão público 

1.1 Dação em pagamento 

A dação em pagamento regulada nos arts, 356 a 359 do Código Civil é o acordo ajustado entre os contratantes pelo qual o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida à título de pagamento, com determinação do preço e relações entre as partes pautadas pelas normas do contrato de compra e venda. A dação prevista no parágrafo 8º do art. 26 da lei de regência permite ao fiduciante darcom a anuência do fiduciário, seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívidaviidispensando a alienação obrigatória do bem em leilão

A dação em pagamento concilia a resolução da propriedade fiduciária, operando a revogação da cláusula resolutiva e o cancelamento da garantia findando a relação de confiança, com a transmissão definitiva da propriedade plena do bem imóvel ao fiduciário – sem abrigo na salvaguarda constitucional de não incidência, constituindo, dessa forma, o fato gerador do ITBI. 

1.2 Alienação do imóvel em público leilão 

O inadimplemento de obrigação contratual coloca o fiduciante em mora e, observados os procedimentos legais, dá causa à consolidação da propriedade, com o cancelamento da garantia fiduciária e confirmação da propriedade plena ao fiduciário, condicionada, entretanto, à compulsória oferta de venda em leilão público do imóvel cuja propriedade foi consolidada em virtude do decurso do prazo de purgação da mora. 

A alienação do bem em público leilão, com a obediência aos dispositivos legais e contratuais aplicáveis, busca converter o ativo nos recursos monetários 

necessários para a satisfação do crédito e a transmissão da propriedade dela resultante constituirá o fato gerador do imposto de transmissão intervivos

1.3 Leilões negativos e extinção da dívida 

O resultado negativo da oferta para venda do imóvel em leilão acarretará a extinção do crédito e o fiduciário tornar-se-á senhor do bem – pelo valor da dívida – com a transmissão plena e definitiva da propriedade, sem a necessidade, em nenhum tempo, de prestar contas ao fiduciante da destinação ou de eventual excesso que resultar da venda do imóvel. 

A transmissão plena e definitiva da propriedade ao fiduciário resultará da averbação requerida pelo interessado dos documentos, assinados pelo leiloeiro, que comprovem o insucesso dos leilões promovidos, postada no campo de incidência do tributo, torna exigível o recolhimento e comprovação de pagamento do ITBI. 

2. Inconstitucionalidade da exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade 

Da mesma forma, consideradas as razões jurídicas de não incidência tributária quando da constituição da garantia, não se apresenta lícita a exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade por conta de inadimplemento contratual, visto que a propriedade em nome do fiduciário será estabelecida ainda em caráter assecuratório, condicionadaviii, limitada e cerceada, despida do direito de livre disposição e com os direitos de uso e fruição tolhidos ou, no mínimo, circunscritos, além de vedada qualquer pretensão de apropriação do bem pelo agora proprietário. Ademais, como já visto, por força de dispositivos legais expressos e obrigatoriamente transcritos para o contrato de alienação fiduciária o bem imóvel será obrigatoriamente ofertado e vendido em público leilão, propiciando sua conversão em numerário para a satisfação da dívida e restituição do eventual excedente ao fiduciante. 

No caput e nos oito parágrafos do referido artigo 26 estão minudenciados de forma satisfatória os procedimentos prescritos para a consolidação da propriedade, da intimação do fiduciante para pagamento do valor da dívida ou das parcelas e encargos vencidos ao detalhamento da consequência do não atendimento ao chamado para a purgação da mora no prazo concedido. 

Contudo, inusitada e incompreensível exigência de vista da prova do pagamento do imposto de transmissão intervivos, acoimada ao parágrafo 7º do mencionado art. 26 da Lei nº 9.514/1997, como condição para a promoção da averbaçãoix da consolidação da propriedade pelos oficiais de registro de imóveis atrelou ao procedimento impertinente imposição de recolhimento do tributo, expressamente vedado na carta constitucional vigente. 

A utilização do adjetivo impertinente se justifica por conta de equivocados entendimentos a que a referida exigência dá causa por sugerir a incidência tributária, contrariando a disposição expressa contida no próprio art. 26 e seus parágrafos. Dessume-se da norma legal em comento que a consolidação ali referida resulta – exclusivamente – da mora, da intimação válida do fiduciante e decurso do prazo deferido para a purgação certificado pelo registrador que procederá, de ofício, sua averbação com a resultância de suprimir o direito real de aquisição e estabelecer propriedade condicionada em favor do fiduciário. 

A incômoda redação do referido § 7º do art. 26 parece ter atordoado os operadores do direito de tal forma que, apesar de decorridos quase trinta anos da promulgação da lei, poucas ações foram propostas com o objetivo de afastar a exigência de recolhimento do imposto, da comprovação do pagamento ao oficial de registro ou para apontar a inconstitucionalidade dessas exigências. 

Em artigo publicado no boletim Migalhasx o ilustre advogado André Abelha, examinou algumas decisões judiciais favoráveis à não incidência do imposto, arrolou os principais argumentos invocados pelos magistrados e buscou o xeque-mate ao asseverar que nenhum deles resistiria a uma análise crítica e concluir que “não há razão jurídica que fundamente, com solidez, a 

inexigibilidade do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor”. 

Ao primeiro argumento atribuído aos magistrados – o imposto teria sido recolhido por ocasião da instituição da garantia não havendo razão para fazê-lo novamente – o autor rebateu com precisão, esclarecendo a reiterada confusão entre a incidência e pagamento do ITBI na compra e venda do imóvel pelo fiduciante e não incidência na constituição da propriedade fiduciária em garantia do empréstimo ou financiamento contratado para a aquisição, e que, podendo ser o contrato principal de qualquer natureza, nem sempre haverá anterior transmissão de propriedade geradora da obrigação de pagamento do imposto. 

Outro argumento pautado foi também afastado de plano pelo autor – a lei ordinária não pode definir fato gerado do ITBI sem violação da reserva da lei complementar – por ser irretorquível que a Lei nº 9.514/1997 não define fato gerador do ITBI, limitando-se a estabelecer o dever de fiscalização para o registrador de imóveis. 

Com acerto, o autor busca desqualificar o derradeiro argumento – a propriedade já era do credor e, por isso, inexistindo transmissão não há fato gerador

Considera, inicialmente, a possibilidade de a propriedade ficar com o credor no caso de dois leilões negativos, o que é, de fato, uma permissão legal e, então, a não incidência do imposto respaldaria evidente contradição do sistema. Não obstante, já vimos anteriormente que, ao contrário do aventado, essa transferência onerosa e definitiva da propriedade plena ao credor em pagamento da dívida após o insucesso na oferta pública configura o fato gerador do imposto definido no inciso I do art. 156 da Constituição e se encontra fora do campo da não incidência, consequentemente é devido o pagamento do ITBI. 

Prosseguindo, sustenta ser o “escopo de garantia” a única e exclusiva razão para a não incidência do ITBI na contratação para concluir que, ‘a constituição da alienação fiduciária cria apenas um patrimônio separado, afetado 

a garantir o pagamento da dívida, e o credor passa a ser fiduciário, e não pleno proprietário. É a consolidação que põe fim a tal escopo, tornando efetiva a transferência da propriedade, não mais fiduciária. O que antes era um direito real de garantia, com a consolidação deixa de sê-lo. Daí a incidência do tributo’. 

Peço vênia para, com o devido respeito, discordar de algumas considerações trazidas pelo i. advogado, inclusive do juízo conclusivo sobre não haver razão jurídica que fundamente a inexigibilidade da incidência do ITBI na hipótese tratada e apresentar a matéria sob outra perspectiva. 

Apesar da premissa lógica, parece evidente que o escopo de garantia se finda com a liquidação da dívida assegurada e não com a consolidação da propriedade que, na estrutura criada para a garantia fiduciária, conforma um procedimento destinado a possibilitar a realização do ativo e a liquidação da dívida, estabelecendo – vale repetir – um domínio limitado e cerceado, mas ainda em caráter assecuratório, com os direitos inerentes à propriedade tolhidos e circunscritos, de modo que o aludido patrimônio separado, a garantir o pagamento da dívida ainda vigerá após a consolidação – mantendo intacto o desígnio de direito real de garantia para a garantia do crédito financeiro – não se embaralhando com o patrimônio imobiliário do credor proprietário. 

Resta límpido que a consolidação da propriedade exprime o exercício do direito real de garantia, portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade e que não desfaz a vocação assecuratória da propriedade fiduciária que permanecerá íntegra até a conversão do bem em recursos de maior liquidez, apropriados ao pagamento da dívida garantida. 

Finalmente, para amparar a incidência tributária, o autor aventa a possibilidade de estímulo a fraude, mediante simulação da alienação fiduciária para que, em conluio, possam os contratantes furtar-se ao recolhimento do imposto. Cumpre salientar que a possibilidade de fraude ou simulação não é razão que justifique a cobrança de impostos. Ademais trata-se, a nosso ver, de fraude impossível na alienação fiduciária. Como já visto, na resolução contratual pelo pagamento haverá o cancelamento da propriedade fiduciária, sem a 

incidência do imposto de transmissão. Na resolução contratual pela inadimplência, após a consolidação o bem será levado a leilão e vendido pela melhor oferta ou no caso de ausência ou insuficiência das ofertas, a propriedade plena do imóvel será transferida definitivamente ao credor e, em qualquer dessas hipóteses, com a incidência e correspondente recolhimento do ITBI. 

A violação da imunidade conferida pelo inciso II do art. 156 da Constituição Federal faz inconstitucional a exigência de pagamento do imposto na consolidação da propriedade e transforma em letra morta a exigência legal de comprovação do recolhimento como requisito para sua averbação pelo registro de imóveis. 

A passividade com que o “contribuinte” enfrenta a imposição ilegal dessas exigências se explica pela imediata agregação das despesas e encargos à dívida originária para compor o valor mínimo de venda do imóvel em leilão público, proporcionando o ressarcimento integral ao fiduciário do valor recolhido, assim como, na correspondente redução do quantum a ser restituído ao fiduciante quando apurado excedente na venda. 

Para tanto dispõe a lei que, frustrado o primeiro leilão seja realizado o segundo para a venda do imóvel por, no mínimo, valor igual ao da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiaisxiO mesmo critério é repetido no § 2º-B do art. 27 que acresce expressamente ao preço do imóvel para o exercício do direito de preferência pelo fiduciante os valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário…xii 

Convém registrar, neste ponto, que respeitados os procedimentos registrais da consolidação da propriedade da forma como estão estabelecidos, observada a inconstitucional exigência de comprovação de pagamento do imposto de transmissão expressa no parágrafo 7º do artigo 26, haverá ilegal e despropositada bitributação onerando indevidamente o fiduciante. 

3. Do acima exposto é possível extrair e oferecer ao debate as seguintes conclusões: 

(a) A não incidência inicial do imposto sobre a transmissão de bem imóvel na alienação fiduciária em garantia, deriva da imunidade expressa no art. 156, II da Constituição Federal e repetida no art. 35, II do Código Tributário Nacional; 

(b) Não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia que se fará com a apresentação do termo de quitação fornecido pelo fiduciário ao oficial do Registro de Imóveis; 

(c) Não haverá incidência do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade pelo inadimplemento contratual, nos termos do art. 26 da lei de regência, visto que a transmissão do domínio é condicionada e limitada, ainda em caráter de garantia, estando vedada a apropriação do bem pelo credor que estará obrigado a alienar o imóvel em leilão público e a entregar ao fiduciante o valor que sobejar ao crédito, configurando mero instrumento de facilitação da prestação assecuratória; 

(d) A consolidação da propriedade em nome do credor exprime o exercício do direito real de garantia estando portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade 

(e) É inconstitucional a exigência de apresentação de comprovante de pagamento do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade realizada como meio para a alienação do imóvel e satisfação da dívida garantida e viola a imunidade conferida pelo incido II do art. 156 da Constituição Federal; 

(e) Configurará hipótese de incidência do imposto e fato gerador da obrigação tributária a ocorrência de qualquer uma das situações explicitamente previstas na Lei nº 9.514/1997, das quais decorram a transmissão efetiva da propriedade, (i) na dação em pagamento; (ii) na transmissão da propriedade ao arrematante 

do imóvel em leilão; (iii) na efetiva transmissão da propriedade ao fiduciário desobrigada da alienação forçada, quando ratificado o insucesso da venda em leilão. 

[*] Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral, com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Tributário, do Consumidor, entre outros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP na gestão 2017/2018. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Vice-Presidente da Academia de Direito Notarial e Registral – AD NOTARE. Palestrante e instrutor e professor. Coordenador de Contencioso Jurídico da Caixa Econômica Federal – CEF. Autor do livro “Alienação Fiduciária de Bem Imóvel – da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros”.